Rafaela Maximiano - Da Redação
Garantir o acesso à água de qualidade a todos é um dos principais desafios para os próximos gestores. Culturalmente tratado como um bem infinito, a água é um dos recursos naturais que mais tem dado sinais de que não subsistirá por muito tempo às intervenções humanas no meio ambiente e às mudanças do clima.
Em várias regiões do país, já são sentidos diferentes impactos, como escassez, desaparecimento de nascentes e rios, aumento da poluição da água. Os especialistas alertam que os problemas podem se agravar se não forem tomadas medidas urgentes e se a sociedade não mudar sua percepção e comportamento em relação aos recursos naturais.
Diante desse cenário o FocoCidade entrevistou a engenheira ambiental, Lediane Benedita de Oliveira, que afirma tratar-se de gestão errada ou falta de gestão, o maior problema nas deficiências de água potável e esgoto tratado das cidades brasileiras e em Mato Grosso.
A especialista afirma também que em nível global, o desafio é conter o aumento da temperatura do clima, fator que gera ondas de calor e extremos de seca que afetam a disponibilidade de água. Essa informação vai de encontro ao relatório especial do Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas, das Nações Unidas, divulgado recentemente, que mostra, se a temperatura global subir acima de 1,5°C, em todo o mundo mais de 350 milhões de pessoas ficarão expostas até 2050 a períodos severos de seca.
A Entrevista da Semana que trata do recurso hídrico: água, também abordou a falta de investimento no setor, a consciência da população, a governança do recurso, o tratamento dos efluentes principalmente neste período de pandemia onde além de resíduos diversos como fármacos, bactérias, agora temos o vírus da Covid-19; além do mito de abundância de água no país que leva as pessoas a desperdiçarem esse recurso fundamental à vida humana.
Lediane que também integra o Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CEHIDRO), atua no Fórum Nacional da Sociedade Civil nos Comitês de Bacias Hidrograficas (FONASC-CBH) e o Comitê de Bacia Hidrográfica dos Afluentes da Margem Esquerda do Rio Cuiabá (CBH-CUIABA), além de conselheira no Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) representando a Federação dos Pescadores de Mato Grosso (FEPESC), alerta que algumas cidades brasileiras já passam por colapso hídrico em seu abastecimento e o cenário só tende a se agravar.
"Só iremos perceber esse possível colapso, quando acontecer. Enquanto ainda tiver um cenário favorável em relação à quantidade de água, não vão se preocupar, principalmente os gestores."
Confira na íntegra:
Como especialista no recurso hídrico água, como vê o atual cenário de abastecimento de água potável em Mato Grosso. O abastecimento deficiente nas casas das pessoas se dá pela falta de consciência no uso ou por fatores de gestão como a falta de regulamentação para técnicas de reuso e pouco investimento em infraestrutura?
Em geral o abastecimento de água é mais abrangente do que a coleta e o tratamento de esgoto. O reuso geralmente é feito para questão industrial não para questão de abastecimento. No Brasil não se usa água de reuso, água de reuso é água que já teve um processo de contaminação processo industrial, não sei se podemos falar de água de reuso para abastecimento.
A deficiência do abastecimento é questão de gestão, em Mato Grosso há muitas empresas privatizadas e necessariamente não fazem investimentos para melhorar o fornecimento do serviço para a população, por isso o abastecimento deficiente.
Vivemos em Mato Grosso um período de seca, estiagem e queimadas. Sabe-se que no Centro-Oeste estão concentradas nascentes de rios importantes do país. As queimadas podem contribuir para uma crise hídrica pelos efeitos da ausência da vegetação nativa para proteger o solo e diminuir a vazão dos rios causando escassez de água para abastecimento urbano?
Sim, com certeza. Porque são retiradas as vegetações nativas e expõe o solo, diminuindo as vazões dos rios naturalmente. Por conta da escassez temos que se pensar que tem anos que são mais secos e outros mais chuvosos, e agora com essa tendência das mudanças climáticas, do aquecimento global, a tendência é ter secas mais prolongadas, e mudança no padrão de chuvas, não necessariamente mudando a quantidade de chuvas anuais e sim o padrão, com eventos extremos de chuvas intensas e mal distribuídas ao longo do ano e secas mais prolongadas, essa é a previsão que se tem para mudanças climáticas no Brasil e principalmente na nossa região. A diminuição da vazão esse ano, por exemplo, a seca está bem pronunciada, foi muito rápida e muito intensa então está um padrão bem diferente. Então se você diminuir a vazão por falta de infiltração da água de chuva, por exposição ao solo, por mal uso do solo, você diminui as vazões dos rios principalmente na seca, porque você altera a recarga dos aquíferos e por conseguinte na seca seguinte pode ter um rebaixamento do nível do lençol freático e diminuir a vazão dos rios no período de seca e isso pode ser tanto por mal uso do solo e também neste ano em que as queimadas estão tão extensas e intensas pode haver também uma alteração na infiltração por perda da vegetação que protege o solo.
Existe um mito de abundância de água no Brasil ou existe um conjunto de fatores que está provocando esse período de racionamento que se arrasta desde 2015 no país e afeta diversos estados brasileiros?
São duas coisas diferentes. O mito da abundância existe porque nosso país é rico em água, então, a tendência das pessoas é usar muita água, lavar quintal lavar calçadas, desperdiçar.
A questão do conjunto de fatores que está provocando esse período de racionamento que se arrasta desde 2015 tem a ver com a gestão. Essas secas de 2015 estiveram mais relacionadas com gestão, é obvio que tem a questão climática e as precipitações, mas as gestões dos reservatórios foram mal feitas. Não houve previsão para o quê e como fazer quando houvesse a seca. Por exemplo, como várias cidades que tiveram problemas com o abastecimento, é uma questão de gestão e também de conservação de nascentes, de matas ciliares, conservação de áreas de recargas.
Tem se dado como solução para o racionamento de água, obras de engenharia, captações de águas de longas distância ou a procura por novos lugares de captação, ao invés de se conservar as bacias aonde já se tem o sistema de captação, principalmente para as grandes cidades. Exemplo disso, foi em São Paulo o caso mais expressivo em 2015, quando focaram mais em obras de engenharias, mais em reservatórios, em busca de águas de abastecimento a longas distancias do que também conservar matas ciliares, nascentes, áreas de recargas. Por tanto a estratégia utilizada atualmente pelos gestores deste setor é uma visão não eficiente.
Quanto essa questão do mito da abundância e racionamento, são diferentes. Todo sistema de abastecimento tem que prever a existência de anos secos e se prevenir em relação a isso, e também no cenário de mudanças climáticas a tendência é se agravar os períodos de seca.
No que consiste um eficiente sistema de governança de recursos hídricos, tanto do ponto de vista do tratamento de água para consumo como para preservação ambiental?
Governança da água não se resume a captação, tratamento, distribuição e preservação ambiental. Quando falamos em governança nos referimos a tudo, a todos os entes envolvidos como as instituições e sociedades civis que atuam para a conservação e uso sustentável do recurso hídrico.
Por exemplo: tratamento de água para consumo é uma das etapas de todo o processo de abastecimento humano e quem faz na verdade a governança é a sociedade pois, envolve além do tratamento da água para consumo, a preservação ambiental, e, todo o contexto de uso da água pela sociedade e a necessidade de conservação das fontes de abastecimento; então envolve todo o processo e todos os atores envolvidos para que seja eficiente.
A legislação prevê a governança através de sistemas de comitês de bacias, aqui em Cuiabá, por exemplo temos o Comitê de Bacias Hidrográficas do Rio Cuiabá Margem Esquerda (CBH-CUIABÁ-ME); Conselhos de Recursos Hídricos Estadual e Federal, aqui em Mato Grosso temos o Conselho Estadual e Recursos Hídricos (CEHIDRO).
Um episódio recente no Rio de Janeiro também trouxe à tona a informação de que uma Estação de Tratamento de Água recebe praticamente esgoto e tem de transformar em água potável. Como avalia esse cenário? Essa também é a realidade de outras estações de tratamento de água aqui em Mato Grosso?
Essa questão de coliformes fecais na água de abastecimento é falta de gestão, falta de investimento, falta de manutenção no sistema, ou seja, é o descaso até o desmonte da companhia de abastecimento de água do Rio de Janeiro que é uma Companhia Estatal. Acredito que eles fazem isso para privatizar depois, usando a frase "o sistema público não funciona então vamos privatizar", na verdade é um desrespeito a população pela falta de manutenção do sistema, pela falta de investimento. Não creio que isso seja um cenário que tenha em Mato Grosso.
Vivemos um período de pandemia devido a essa nova doença, a Covid-19, que alertou sobre a importância dos hábitos da higiene: lavar as mãos constantemente, lavar as roupas sempre que chegar da rua, bem como a higiene do ambiente e objetos. Técnicos apontam que, atualmente, o esgoto doméstico traz também uma carga elevada de pesticidas, protetor solar, repelentes, remédios como antibióticos, hormônios, antidepressivos e vários outros fármacos. Quais os desafios para se tratar a matriz do esgoto atualmente? As estações em operação em Mato Grosso hoje dão conta de tratar esses resíduos?
Sim, o esgoto doméstico traz uma carga elevada de protetor solar, repelente, remédios, antibióticos, hormônios, entre vários outros fármacos, inclusive agora a presença do vírus da Covid-19. Os pesticidas e agrotóxicos não estão no esgoto doméstico, estão principalmente na área rural, a não ser nos inseticidas que usamos em casa para insetos, mas a carga de pesticidas e agrotóxicos no esgoto doméstico, não é tão elevada quanto nos efluentes nas áreas rurais. Principalmente o escoamento superficial quando o solo é lavado. Nessas áreas desprotegidas esse agrotóxico que é lavado nas lavouras depois de uma chuva, acaba entrando nos rios devido à falta de proteção de matas ciliares.
Não, as estações não dão conta de tratar os resíduos porque as estações geralmente fazem apenas os tratamentos primários, que é só desinfecção e retirada de material em suspenção da água. No Brasil, praticamente ainda não existe nenhum sistema de tratamento que tirem remédios ou vírus, etc, são os chamados poluentes emergentes, que são substancias como os remédios, antibióticos e etc. O desafio seria tratar esse esgoto com outros sistemas, os secundários e terciários, que são bem mais caros, e que ainda não são utilizados no Brasil. Infelizmente o Brasil é bem atrasado nesse sentido aonde normalmente é feito somente o primário que é tirar as bactérias e os materiais em suspensão.
No caso de Mato Grosso onde as cidades não são tão grandes a tendência são esses compostos se decomporem ao longo do rio. Apenas na área urbana de Cuiabá e Várzea Grande que se tem uma maior concentração de população e se tem maiores problemas, mas como o rio segue para o Pantanal, esses compostos tendem a ser minimizados, decompostos estando o Pantanal saudável.
O desafio é tratar o esgoto e, principalmente universalizar o acesso a água potável através de rede de abastecimento e fazer a coleta e tratamento de esgoto de uma forma universal. Que todo o esgoto gerado na cidade seja tratado, além de também melhorar as condições nas áreas rurais para não contaminar o lençol freático e ter um destino mais adequado para os esgotos nas áreas rurais.
Como a questão do saneamento está diretamente relacionada ao nível de adoecimento das populações das cidades?
Bairros aonde não existe tratamento de esgotos, cidades aonde não tem nem coleta adequada e os esgotos ficam a céu aberto é um grande problema de saúde pública. Crianças são as principais vítimas, e a mortandade infantil no Brasil ainda é muito relaciona por falta de saneamento básico. Morre-se por diarréia, isso é uma questão gravíssima, pois, reflete o descaso, apesar de termos uma política nacional de saneamento, políticas nacionais de resíduos sólidos. É um descaso também a questão dos lixões, descaso grande dos poderes públicos municipais responsáveis pelo espaço urbano.
A falta de saneamento em muitos bairros e municípios está diretamente relacionada a adoecimentos principalmente de crianças e mortandade delas, isso é um exemplo de como nosso país pode ser considerado subdesenvolvido. Um país de terceiro mundo, apesar de riquíssimo, o descaso com questões básicas de direito a saúde da população é menosprezado.
No atual contexto, como assegurar água de qualidade e em quantidade suficiente para consumo humano nas grandes cidades? Que ações são necessárias, tanto do ponto de vista público, como da sociedade em geral?
Não só nas grandes cidades se tem problema de assegurar a quantidade e qualidade da água. Como já disse são questões de gestão, o poder público, as empresas de saneamento e a sociedade através dos comitês de bacias se exigindo que se implante um sistema de abastecimento e saneamento que seja eficiente e que cumpram a lei.
Existe agora o conceito de segurança hídrica que tem que ser aplicado, a falta de abastecimento de agua adequado e universal que atinge a maior parte da população, a falta de saneamento básico, o desmatamento de áreas de abastecimento de mananciais de nascente, são exemplos de descaso total de falta de gestão.
Se o atual cenário não for alterado, em quanto tempo o Brasil entrará em colapso no que diz respeito à segurança hídrica?
Não dá pra avaliar isso, em quanto tempo entrará em colapso, mas é possível afirmar que já existe colapso em várias cidades brasileiras, problemas em Brasília, em Recife, São Paulo, Minas Gerais, Belo Horizonte, entre outras. Mais uma vez afirmo: a questão é gestão, o descaso do poder público, dos gestores e da própria população que não se mobiliza para mudar esse cenário.
A questão de mudanças hídricas no cenário de mudanças climáticas só tende a se agravar, só iremos perceber esse possível colapso, quando acontecer. Enquanto ainda tiver um cenário favorável em relação a quantidade de água, não vão se preocupar, principalmente os gestores.
Temos um novo marco no saneamento que institui mudanças na gestão do saneamento básico, as cidades de Mato Grosso já se adequaram, principalmente Cuiabá e Várzea Grande? Quais são as vantagens e desvantagens do incentivo à privatização do setor para resolver os problemas de água potável e esgoto tratado?
A maioria das grandes cidades no exterior, reverteram, elas reestatizaram o sistema de abastecimento e saneamento porque não deu certo. Avalio que o Brasil está sempre na contramão da história enquanto o mundo está revertendo as privatizações desse setor, que ocorreu principalmente na década de 90, o Brasil está fazendo o caminho contrário. Aprovou um marco de saneamento que permite a privatização do setor, isso mostra como somos sempre atrasados.
A questão é quando você privatiza a empresa em geral não investe, como ela tem que render lucros para os investidores e acionistas, a tendência é não investir, e só render lucros para as empresas. Não investem na manutenção do sistema, na ampliação no sistema de abastecimento e de saneamento, não há interesse dessas empresas em municípios pequenos por não gerar lucro. A questão da privatização é que o foco não é atendimento à população com qualidade, mais sim lucros aos acionistas. Nas cidades de Mato Grosso aonde muitas são privatizadas, exemplo Cuiabá, com certeza a população não é atendida devidamente, principalmente na questão do saneamento.
Considerações finais sobre o tema.
A população precisa se organizar, através dos comitês de bacias, por exemplo, através das eleições, de políticos realmente comprometidos com o bem da sociedade, não somente para o bem de alguns setores da sociedade e exigir dos políticos eleitos que realmente cumpram com seu dever de promover a qualidade ambiental e social e de saúde pública dos municípios e estados. A questão é responsabilidade, profissionalismo, quadros técnicos adequados e cobrança da sociedade, monitoramento e atuação da sociedade em geral para que isso seja realmente cumprido, efetivado, e que a lei seja seguida, as leis que privam pelo bem da sociedade.
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