O Direito costuma se apresentar como ilha de certezas entre mares de conflito. Códigos, prazos, precedentes — tudo parece dizer que basta aplicar a regra e o mundo se endireita. Mas o cotidiano desmente a promessa: normas análogas produzem decisões diferentes; cláusulas vagas pedem critérios; e os litígios que chegam ao foro trazem na bagagem desigualdades, crenças e medos. É aí que a Sociologia e a Filosofia deixam de ser ornamento acadêmico e tornam-se instrumentos de justiça.
A Sociologia ajuda a enxergar. Durkheim lembrava que as instituições são fatos sociais: têm força própria, moldam condutas, resistem ao voluntarismo. Weber, por sua vez, mostrou que a autoridade se legitima por crenças compartilhadas — legalidade não vive sem legitimidade. No Brasil, onde a lei muitas vezes chega mais rápido ao centro do que às periferias, a lente sociológica identifica desigualdades estruturais que atravessam o processo: quem tem tempo e informação fala mais alto; quem depende do Estado teme contestar. Sem notar isso, o juiz arrisca tratar como “capricho” o que é consequência de posição social.
A Filosofia, por sua vez, ensina a julgar melhor. Desde Kelsen, sabemos que a validade formal não responde a todas as perguntas; Hart explicou que regras funcionam porque a comunidade jurídica as reconhece “por dentro”; Dworkin exigiu integridade: decidir não é votar preferências, é construir a melhor leitura moral do sistema. Quando princípios colidem, Alexy oferece uma gramática de justificativa: adequação, necessidade e ponderação em sentido estrito, com base empírica e transparência. Sem esse trabalho filosófico, a motivação vira retórica, e a sentença, ato de vontade travestido de técnica.
Sociologia e Filosofia convergem onde mais dói: a linguagem. Foucault advertiu que discursos distribuem poder; Habermas responde pedindo publicidade de razões. No cotidiano, isso se traduz em decisões compreensíveis, que enfrentam objeções e explicam por que rejeitam alternativas. Warat e Tércio Sampaio Ferraz Jr. já alertavam: o “juridiquês” exclui quem mais precisa do Direito. Uma justiça que se faz entender aumenta a confiança pública e reduz a distância entre o tribunal e a rua.
Há outro ganho: políticas públicas judicializadas. Quando o Judiciário julga saúde, educação ou ambiente, não basta invocar princípios; é preciso dialogar com dados e impactos sociais. A Sociologia oferece métodos para medir efeitos; a Filosofia fornece critérios para pesar custos e benefícios sem sacrificar direitos. O resultado não é ativismo, é responsabilidade: interferir quando necessário, justificar sempre.
“Mas o juiz não deve ser sociólogo nem filósofo”, dirá alguém. De fato, ele não precisa converter a toga em cátedra. Precisa, isso, sim, saber perguntar como um sociólogo — quem ganha e quem perde com esta regra? Quais barreiras invisíveis há aqui? — e justificar como um filósofo — Por que este meio é adequado? Havia alternativa menos restritiva? Qual o peso desta liberdade frente àquele interesse? Trata-se de método, não de modismo.
Numa democracia ruidosa, a Sociologia protege o Direito da ingenuidade e a Filosofia o protege do arbítrio. Juntas, elas lembram que a lei não é um fim em si, mas meio para realizar bens humanos: liberdade, igualdade, dignidade, segurança. Sem Sociologia, arrisca-se confundir privilégio com mérito; sem Filosofia, trocam-se princípios por humores do dia. Com ambas, o processo se torna um espaço de razões públicas, onde nem o poder decide por capricho, nem a maioria impõe virtude compulsória.
O desafio brasileiro não é escolher entre técnica e sensibilidade, mas articular regra, fato e valor. Isso pede formação continuada, abertura a pesquisas, linguagem clara e padrões firmes de proporcionalidade e precedentes. Pede também humildade: a consciência de que decidir é sempre aprender. Quando o Direito admite esse diálogo, ele deixa de ser ilha e vira ponte: liga a norma à vida, a justiça à sua razão de existir. E, ao fim, cumpre o que promete — não por força, mas por convencimento.
É por aí...
Gonçalo Antunes de Barros Neto (Saíto) é da Academia Mato-Grossense de Letras (Cadeira 7) e do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso - IHGMT.


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