Dizem que todo adulto carrega uma criança dentro de si. Isso não é apenas uma metáfora bonita; é a anatomia da nossa alma. Nossa história começa muito antes de termos palavras para contá-la. Ela se inscreve no corpo, no tom de voz, nos medos inexplicáveis e nos amores que repetimos. As experiências da infância são as sementes da nossa psique. Algumas germinam em flores resistentes, nos dando força e um senso de pertencimento. Outras, em silêncio, crescem como raízes nodosas de dor, confusão ou solidão.
Muitas das sombras que hoje chamamos de ansiedade, pânico, baixa autoestima ou dificuldade de amar são, na verdade, ecos. São vozes distantes de uma criança cujas feridas nunca foram nomeadas, muito menos cuidadas.
Entre as dores mais profundas, está a do abandono. Ele nem sempre vem com um portão batendo. Muitas vezes, é uma ausência sutil: pais fisicamente presentes, mas emocionalmente distantes, perdidos em seus próprios labirintos de trabalho, vícios ou tristezas. A criança aprende, então, uma lição precoce e devastadora: seus sentimentos são um incômodo. Internaliza o mantra "não vale a pena incomodar". Na vida adulta, essa ferida se traduz em um medo visceral da solidão, em relações sufocantes ou, no extremo oposto, em uma fortaleza de independência onde ninguém é autorizado a entrar.
Há também a cicatriz da rejeição. Ela nasce quando a criança sente que não é aceita em sua essência. É o filho que "deveria" ter sido de outro jeito, o menino sensível que ouve "homem não chora", a filha artista que é chamada de "decepção". Essas frases, repetidas, deixam de ser palavras e se tornam a trilha sonora de uma crença: "eu não sou suficiente". Mais tarde, essa voz se manifesta como autossabotagem, perfeccionismo cruel e a incapacidade de aceitar um elogio.
A humilhação é outra ferida que marca a alma. São as risadas às custas da criança, os apelidos cruéis, a exposição em público, o "era só uma brincadeira" que esfaqueia a dignidade. Aqui se incluem o bullying, o racismo, a gordofobia, a LGBTfobia. O adulto que carrega essa marca tende a se tornar invisível, a temer brilhar, a aceitar migalhas afetivas porque, no íntimo, acredita que não merece um lugar à mesa.
E existem feridas para as quais faltam palavras, como as do abuso. Quando quem deveria ser porto seguro torna-se fonte de terror, algo fundamental se quebra. A criança, em sua lógica inocente, quase sempre conclui: "a culpa é minha". Desse poço brotam a vergonha do próprio corpo, o pavor da intimidade, a confusão entre amor e posse, e uma dor tão insuportável que busca anestesia em vícios de todo tipo.
Há ainda a dor do silêncio, a negligência emocional. Não há gritos, não há agressões, há um vazio. São casas onde ninguém pergunta "como foi seu dia?" de verdade. A criança cresce sem um dicionário para seus sentimentos. Torna-se um adulto que explode sem entender o porquê, que se sente um estranho para si mesmo, que oscila entre a ânsia de proximidade e a fuga para a solidão.
E não podemos esquecer as crianças que foram adultas prematuras. Aquelas que tiveram que acalmar o pai bêbado, consolar a mãe deprimida, gerenciar as contas da casa. Elas aprendem a ser fortes, mas essa é uma força que nasce da asfixia da própria infância. Na vida adulta, se tornam pessoas que não sabem pedir ajuda, que carregam o peso do mundo nos ombros e sentem culpa por simplesmente descansar.
Todas essas feridas são ainda mais profundas quando atravessadas por condições de vida desumanas: pobreza, fome, violência sistêmica, racismo. São traumas que não são "drama", são ferimentos repetidos que sussurram: "sua vida vale menos".
Essas marcas não se dissolvem com o tempo. Elas se infiltram em nossas escolhas: no medo paralisante de ser abandonado, na dificuldade de confiar, na necessidade doentia de controle, na autocrítica impiedosa, nas dores físicas que nenhum exame consegue diagnosticar. Nada disso é falha de caráter. É a linguagem da sobrevivência. É a criança interior, assustada e ferida, ainda tentando proteger o adulto que você se tornou.
Mas feridas não são sentenças de prisão perpétua. Elas são, antes de tudo, um apelo por cuidado.
A cura raramente é uma epifania repentina; é uma travessia. E ela começa com o ato revolucionário de nomear a própria história. É abandonar o "não foi nada" e encarar a verdade: "isso me machucou". É possível honrar o esforço dos nossos pais e, ao mesmo tempo, reconhecer que suas limitações nos causaram dor. Uma verdade não invalida a outra.
O próximo passo é a validação da própria dor. É trocar o "supere isso" por "faz todo sentido que eu me sinta assim". A autocompaixão não é fraqueza; é a base de qualquer reconstrução possível. Você não pode curar algo que insiste em tratar com desprezo.
Buscar apoio é um ato de coragem, não de derrota. Algumas feridas são pesadas demais para carregar sozinho. A terapia, os grupos de apoio, os amigos que verdadeiramente escutam — esses são os fios que nos tecem de volta à comunidade, dissipando o mito de que somos fundamentalmente quebrados.
A cura exige, então, uma reeducação do coração. É aprender a dizer "não" sem culpa, a escolher companhias que respeitem nossos limites, a observar os padrões que repetimos e, com paciência, optar por caminhos diferentes. Quem foi humilhado precisa se permitir habitar espaços de respeito. Quem sempre cuidou de todos precisa aprender a ser cuidado. Quem temeu o abandono precisa se arriscar na estabilidade de um vínculo seguro.
Não se esqueça do corpo, o arquivo vivo da nossa história. O trauma mora nos músculos tensionados, na respiração curta, no estômago em nós. Movimento, respiração consciente, alimentação que nutre — são formas de dizer ao corpo: "estou ouvindo você. Estamos seguros agora."
E então, chega o momento da alquimia: o que fazer com essa dor? A transformação começa quando percebemos que nossa ferida pode se tornar uma fonte singular de sentido e empatia. Não se trata de agradecer pelo sofrimento, mas de usá-lo como combustível para um propósito maior. Quem viveu o abandono se torna porto para outros. Quem sobreviveu à humilhação levanta a bandeira da dignidade. A dor, quando integrada, deixa de ser apenas um peso e se torna também o nosso farol.
Curar a criança interior não é apagar o passado. É, finalmente, tornar-se o adulto que ela sempre precisou. É aprender a falar com você mesmo com gentileza, a permitir o descanso, a buscar ajuda, a honrar seus limites. É resgatar aquela criança e dizer, com a autoridade de quem agora pode protegê-la: "Eu vejo você. Sua dor é real. Você não está mais sozinha. E, a partir de hoje, eu cuido de nós."
A grande descoberta é esta: nossas feridas não nos desqualificam para o amor. Pelo contrário: quando encaradas com coragem e compaixão, elas se tornam os lugares mais sensíveis e sábios da nossa humanidade. É delas que nasce a capacidade de olhar para o outro não de cima, mas de lado — não como um problema a ser consertado, mas como um viajante cansado que, assim como nós, só precisa de um pouco de paz, um pouco de respeito e a chance de ser amado.
Paulo Lemos é advogado criminalista em Mato Grosso e humanista.
paulolemosadvocacia@gmail.com

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