• Cuiabá, 28 de Setembro - 2025 00:00:00

A ONU aos 80 anos: desafios e perspectivas futuras

Nesta semana, acontece na sede da ONU em Nova York, os discursos que abrem a 80ª sessão da Assembleia Geral da ONU. Em sua maioria, eles são feitos pelos chefes de Estado dos países membros ou pelo ministro das Relações Exteriores. Além de abrir os debates para o ano, a reunião cria uma importante oportunidade de encontro entre os principais líderes globais, ao mesmo tempo em que se reúnem paralelamente para discutir e
negociar em torno de importantes questões da política internacional.

Neste ano, a AGONU representa um marco na história da organização, pois acontece em seu aniversário de 80 anos, e abre espaço para uma reflexão sobre o futuro da ONU e sua efetividade no atual contexto global, marcado por crescente disputas e competição entre os principais atores internacionais. Os desafios envolvem conflitos internacionais que violam importantes princípios do direito internacional, como a soberania dos países e os direitos humanos, a mudança climática, e a persistência do subdesenvolvimento que conflitam com os princípios que motivaram a criação da organização: a promoção da paz, da cooperação e do desenvolvimento.

Em seu discurso de abertura, o Secretário Geral da ONU, António Guterres, resgatou os princípios que levaram a criação da ONU e o seu dever de ser guardiã do Direito Internacional e promover uma ordem internacional sustentada pelo respeito às leis e pela cooperação. Para o Secretário Geral, hoje vivemos a volta da lógica do poder triunfando sobre a lógica do Direito e das leis com países agindo de maneira a desrespeitar as normas
e regras do Direito Internacional como se estas regras não fossem aplicáveis a eles. Guterres reforçou que o contexto internacional contemporâneo em que novas potências têm ganhado relevância, tem se tornado cada vez mais multilateral e alertou que, no período da Segunda Guerra Mundial, a distribuição de poder também era multipolar, mas a ausência de instâncias de cooperação multilateral levou à Guerra. Assim, Guterres ressaltou a
importância do multilateralismo e espaços de negociação para a promoção da cooperação em um contexto internacional marcado pela redistribuição de poder e pela contestação da ordem internacional vigente.

Guterres conclamou os países membros da ONU a fazerem cinco escolhas a fim de retomar um sistema internacional pacífico, estável e próspero para todos os países. A primeira escolha é pela construção de uma paz baseada no Direito e no respeito às leis, uma vez que a falta de respeito ao Direito Internacional torna o recurso ao uso da força na resolução de disputas cada vez mais constante. A segunda escolha é pela dignidade e pela proteção dos direitos humanos, que precisam ser não apenas respeitados, mas efetivamente desfrutados pelas pessoas. A terceira escolha é pela justiça climática, promovendo de forma justa a transição energética, respeitando o princípio das responsabilidades compartilhadas, porém desiguais e aumentando o financiamento climático. A quarta escolha é pela governança da Inteligência Artificial para garantir o respeito aos Direitos Humanos, garantir o acesso amplo a estas novas tecnologias, e garantir que estas serão utilizadas a serviço da humanidade e não de interesses particulares. A quinta escolha é pela renovação e manutenção da ONU reforçando o compromisso dos países membros com a Carta da ONU e reformando a organização para que seja mais representativa e continue sendo central para a resolução de crises internacionais.

A crise da ONU é um reflexo do contexto mais amplo da política internacional, em que há uma perceptível redistribuição de poder resultante da ascensão de países emergentes, sobretudo a China, e a redução relativa do poder norte-americano e europeu. A ONU foi criada em 1945, em São Francisco, ao fim da Segunda Guerra Mundial, em um contexto internacional no qual a distribuição de poder era diferente e foi refletida da construção da organização, por exemplo, na estrutura do Conselho de Segurança. Naquele momento, os Estados Unidos eram a potência dominante em termos políticos, econômicos e militares de forma inquestionável, e com uma importante assimetria que permitiu ao país liderar a construção da ordem internacional no pós-Guerra, refletindo princípios liberais como o respeito às regras e instituições e privilegiando a diplomacia e a cooperação como forma de manter a paz e a estabilidade na política internacional.

A distribuição de capacidades de poder na política internacional não é estática e ao longo desses 80 anos mudou. Em momentos de redistribuição de poder, a ordem internacional passa a ser questionada, uma vez que se gera um descompasso entre as estruturas existentes que refletem a distribuição de poder anterior e a distribuição de poder emergente em que os novos atores buscam influência que corresponda às suas capacidades de poder adquiridas. Esse é o contexto internacional atual e a crescente percepção de ineficiência e inefetividade das organizações internacionais é sintoma dessa dinâmica da política internacional. Não à toa, disputas de poder e por zonas de influência tornaram-se o principal tom da dinâmica contemporânea da política internacional.

Esse cenário traz problemas complexos para a ONU e para as demais organizações internacionais. Na lógica da disputa de poder, o respeito ao Direito se torna secundário e o uso da força uma possibilidade iminente, a diplomacia e a cooperação são trocadas pela coerção e há uma crescente fragmentação da política internacional entre zonas de influência das potências que estão no centro do jogo. O grande desafio que se coloca à organização é como conseguir se manter relevante e assegurar o respeito ao Direito Internacional no contexto da volta da lógica da política de poder. Contudo, a ONU é uma organização internacional feita pelos seus países-membros, logo, o Secretário Geral Guterres coloca essa responsabilidade nas escolhas dos países que fazem parte da organização. As escolhas dos países membros, mas sobretudo das principais potências
econômicas e militares do mundo, determinarão a relevância da ONU no futuro da ordem internacional.

Ao olhar para os discursos proferidos pelos chefes de Estado na AGONU vemos duas tendências importantes. Enquanto as potências europeias, como a França, conclamam pela cooperação entre países desenvolvidos e em desenvolvimento e pelo fortalecimento da organização, a principal liderança responsável pela criação da organização, os Estados Unidos, se mostram cada vez mais céticos e orientados a agir de forma unilateral a fim de assegurar a preponderância de poder do país nesse tumultuoso contexto internacional. Enquanto isso, lideranças do sul Global, como o Brasil, conclamam pela reforma da organização para que se torne mais representativa, dando maior poder de voz aos países em desenvolvimento das questões da política internacional, sobretudo no âmbito do Conselho de Segurança da ONU, a fim de refletir esse novo cenário cada vez mais multilateral da política internacional.

Robert Gilpin, um autor das Relações Internacionais, argumenta que momentos de transição da distribuição de poder são marcados por competição acirrada, instabilidade e sucessão de crises que podem culminar numa grande guerra em que a nova estrutura de poder da política internacional será determinada. Contudo, o autor contemplava que a possibilidade de uma transição pacífica seria uma possibilidade, principalmente em um contexto internacional no qual as armas nucleares geram desincentivos para uma guerra total. Nesse contexto, que papel a ONU pode exercer para contribuir para um momento de transição e mudanças na ordem internacional aconteça de forma pacífica? Além das reformas necessárias para que a estrutura da organização reflita a nova dinâmica da política internacional, a responsabilidade de escolher o caminho da cooperação e do
respeito às regras e normas internacionais, como a Carta da ONU, ainda é um dever e uma responsabilidade individual dos estados-membros e, sobretudo, das principais potências incumbentes e em ascensão.

 

Fernanda Brandão, Doutora em Relações Internacionais, Professora e Coordenadora do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Rio.



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