A História é um espaço de disputa por verdades e poder. Quando um movimento favorável a um determinado tipo de viés político sagra-se vitorioso, costuma-se caracterizá-lo como algo revolucionário, transformador. No caso de mudanças ocorridas por forças políticas contrárias a determinados interesses, o caráter golpista do movimento ganha maior destaque.
Aproximando essa análise para a realidade brasileira, podemos destacar em nossa historiografia a expressão Revolução de 1930, referente à chegada de Getúlio Vargas ao poder, e Golpe de 1964, no que diz respeito à tomada de poder por parte dos militares. Em ambos os casos, porém, tivemos elementos golpistas e revolucionários na ação e nos projetos políticos. Essa disputa pelos conceitos também se aplica ao modo como são elaborados os estudos acerca das transformações ocorridas no Chile, no decorrer dos últimos 50 anos.
No dia 11 de setembro de 1973, caía, no Chile, o governo de Salvador Allende. Eleito democraticamente em 1970, Allende teve como projeto de governo o estabelecimento de uma nova experiência socialista no século XX, por meio de uma vitória nas urnas ao invés de uma conquista pelas armas. Sua base de apoio vinha da chamada Unidade Popular (UP).
O Programa da UP foi constituído a partir de três premissas: mudança na caracterização do Chile como um país capitalista, sendo que este sistema era considerado incapaz de corresponder às necessidades daquele tempo; uma crítica direta ao governo anterior da Democracia Cristã, que em seu programa não havia implantado sequer uma política reformista, sendo classificado como um novo governo da burguesia ao serviço do imperialismo; e, por fim, um ataque direto ao imperialismo estadunidense, considerado o principal responsável pelo fracasso do modelo social chileno e latino-americano.
Contudo, não havia um consenso em torno da interpretação do que seria a "via chilena ao socialismo". Não havia se definido como ela seria gestada, caso chegasse ao poder. O Partido Socialista entendia esse caminho como uma transformação revolucionária acelerada, enquanto o Partido Comunista entendia esse processo como um passo para a aproximação ao socialismo.
Ao chegar à presidência com 36,2% dos votos, Allende teve que lidar com as polarizações no interior da UP, a pressão dos EUA contra um governo autodeclarado marxista, além de conviver com a influência da Revolução Cubana em diversos movimentos e partidos da esquerda chilena. Apesar da vitória, diante do caráter fragmentário e polarizador do sistema político chileno, a Unidade Popular nunca conquistou uma maioria sólida no Congresso, na opinião pública e na própria sociedade civil chilena. Tudo isso, somado às próprias incongruências do projeto da UP, referente às desconfianças para com o sistema democrático chileno, fez com que as forças opositoras a Allende alimentassem ações contrárias à continuidade de seu mandato. Após uma série de crises, o governo da UP foi golpeado pelas Forças Armadas, em setembro de 1973.
A Junta Militar que derrubou o governo eleito de Salvador Allende tinha como expoente o general Augusto Pinochet, que fora comandante do Exército durante o governo socialista. Sua chegada ao poder foi marcada por uma transformação revolucionária nas estruturas da sociedade chilena, pois ali ocorreu a introdução de uma das primeiras experiências neoliberais da História. Entre várias medidas estabelecidas, Pinochet desmobilizou o frágil Estado de bem-estar social que vigorava no Chile, delegando ao setor privado vários protagonismos nas áreas de saúde, educação, previdência social, até chegar à administração de recursos básicos, como a distribuição de água. Seu governo também foi marcado por uma forte repressão política, responsável por milhares de mortes e desaparecimentos.
Em relação aos efeitos do golpe revolucionário de 1973, vale destacar alguns aspectos. O que para alguns, o neoliberalismo é o verdadeiro apocalipse na Terra, para o Chile, a experiência neoliberal o colocou em outro patamar na América Latina. Nos últimos 50 anos, de um país intermediário nos índices sociais e econômicos, o Chile passou a ser o país mais próspero da região, alcançando o maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que historicamente era liderado pela Argentina. É fundamental registrar que esses índices foram alcançados nos anos em que a ditadura chilena já havia sido derrotada, através do plebiscito, ocorrido em 1988, quando a maioria da população votou contra a continuidade de Pinochet no poder. Contudo, a Constituição de 1980, com seu caráter neoliberal, continua vigente, mesmo tendo sofrido várias alterações políticas. Ademais, o desenvolvimento chileno não veio acompanhado de uma equânime distribuição de renda, e essa desigualdade latente resultou nas grandes manifestações de 2019, quando um amplo movimento a favor de uma nova constituição irrompeu.
Trata-se de um movimento com idas e vindas, pois o novo texto formulado e destinado a propor uma nova sociedade chilena foi reprovado em sua maioria, em 2022. Em seu lugar, foi eleita uma nova assembleia mais conservadora, que provavelmente não irá desestruturar as bases do neoliberalismo chileno. Sendo assim, enquanto o atual governo de esquerda de Gabriel Boric dará muita ênfase ao golpe contra Salvador Allende há exatos 50 anos e defender mudanças na organização do Estado chileno, sua população, que se opõe ao uso da violência e do golpe político, continuará legitimando a estrutura neoliberal vigente.
Victor Missiato é analista político, doutor em História Política e professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie - Tamboré. Autor do livro "Caminhos invertidos: o comunismo no Brasil e no Chile" (Ed. Prismas).
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