Muito se tem ouvido falar, presentemente, em “Direito Penal Econômico”, uma seara rebelde que, apesar de ostentar em seu núcleo a palavra “penal”, não se submete às balizas da dogmática própria deste ramo do Direito.
Cuida-se de uma área nova, que não se adequa ao Direito Penal, mas faz, numa espécie de dinâmica reversa, este adequar-se a ela. Pouco se questionam suas impropriedades. Quando tudo aponta para sua ilegitimidade, parte da doutrina limita-se a dizer que se trata de uma decorrência necessária da chamada “sociedade de risco”.
É, aliás, essa sociedade de risco a responsável pelo desenfreado expansionismo penal, de cariz populista, muito bem trabalhado por Jesús María Silva Sánchez. Neste denominado “Direito Penal Contemporâneo” tudo é diferente e se rege por regras próprias. Se não há um bem jurídico com dignidade penal, o Direito Penal Econômico “cria” seus bens “supraindividuais” ou “espiritualizados”.
No campo da tipicidade, de igual forma, se a lei penal não consegue abarcar as “complexidades das novas relações sociais”, trabalha-se com uma nova técnica legislativa, por meio da qual a lei é mera formalidade, quase que moldura de uma tela principal, cuja essência desconhece os conceitos da dogmática e passa ao largo do processo legislativo.
Verdadeiros “corpos sem alma”, as leis penais da atualidade nada incriminam, se não vierem acompanhadas de um sem-fim de complementos. - É o ápice dos tipos penais abertos, do amplo em emprego das leis penais em branco e dos exagerados elementos normativos , que acabam por retirar a função comunicativa que a norma penal deve ostentar.
Nesse contexto, em que mesmo os especialistas da área enfrentam trabalho árduo para delimitar o real alcance das incriminações, ganha especial relevo a análise do instituto do “erro de proibição” – de uso já escasso no “direito penal clássico ou nuclear” – como mecanismo de efetivação do princípio da culpabilidade, a funcionar como verdadeira barreira para a “legalização da responsabilidade penal objetiva”.
Diferentemente do erro de tipo, em que agente atua sem saber o que faz, no erro de proibição a conduta é praticada de forma consciente, dado que a incidência do erro se dá quanto ao desconhecimento antinormatividade do comportamento. Na prática, no entanto, acaba-se por utilizar a primeira parte do artigo 21 do Código Penal para negar-se as consequências jurídicas do instituto , com base no raso fundamento segundo o qual “o desconhecimento da lei é inescusável”.
Mesmo num campo cujos bens jurídicos são completamente artificiais e as normas incriminadoras dão as costas para o princípio da taxatividade, recorre-se à insuficiente teoria da “esfera leiga/profana do injusto” – trabalhada por JESCHECK e WEEKEND – a qual, como aponta JUAREZ CIRINO DOS SANTOS, “indica a antijuridicidade material como objeto da consciência do injusto, definida como conhecimento da contradição entre comportamento real e a ordem comunitária, que permitiria ao leigo saber que seu comportamento infringe o ordenamento jurídico ou moral, independentemente de conhecer a lesão do bem jurídico lesionado ou a punibilidade do fato”.
Ainda que se esteja no campo do direito penal clássico ou nuclear, por meio do qual se tutelam bens jurídicos individuais, marcadamente atrelados a direitos humanos fundamentais, JUAREZ CIRINO DOS SANTOS explica que a possibilidade de conhecimento do injusto, que indica a evitabilidade do erro de proibição, depende de múltiplas variáveis – como, por exemplo, a posição social, a capacidade individual, as representações de valor do autor etc. –, razão por que deve ser regida por critérios normais de reflexão ou de informação, e não por balizas demasiado rígidas, que são incompatíveis com a dinâmica social.
Nesse cenário, recorrer à esfera profana do injusto, se pouca utilidade tinha no campo do direito penal comum, revela-se inaceitável na seara do direito penal econômico, que não pode ser orientado por um “método primitivo do esforço da consciência”. A certeza ou mesmo a existência de fundamentos razoáveis sobre a permissibilidade do fato seriam, com efeito, argumentos suficientes para admitir a inevitabilidade do erro de proibição, tendo em conta o fato de que ninguém pode conhecer a infinidade das proibições penais , notadamente num Estado marcado por acentuada hipertrofia legislativa em matéria criminal.
Se tal realidade já se apresenta inviável no campo do direito penal clássico, com muito mais razão tem incidência no artificial direito penal econômico, que não só é profícuo em leis, como as suas leis não se bastam por si sós, reclamando a constante complementação – muitas vezes em cascata, quando próprio “complemento” precisa ser “complementado”.
Dessa forma, deve-se compreender que as normas penais incriminadoras do direito penal econômico não são nada acessíveis, de modo que tampouco se admite como válida a aceitação do conceito de “esfera profana do injusto”, por meio do qual se faz rudimentar e arbitrária cisão entre “desconhecimento do injusto (matar não é certo)” e “desconhecimento da lei (matar alguém; art. 121, CP). Sobre o tema, JUAREZ CIRINO DOS SANTOS explica, com propriedade, que:
Diferenciar conhecimento do injusto e conhecimento da lei para atribuir relevância ao desconhecimento do injusto e irrelevância ao desconhecimento da lei penal é ignorar que o injusto penal só pode existir como injusto tipificado na lei, hoje generalizado sob o conceito de injusto que, por força do princípio da legalidade, aparece na lei penal sob a forma de tipo legal (ou tipo penal), como descrição do comportamento proibido. Mais: precisamente porque injusto penal e lei penal representam, respectivamente, as dimensões concreta e abstrata das proibições ou comando do direito penal é possível, no Direito Penal comum, ter ou atingir o conhecimento da lei através do conhecimento do injusto, mas no Direito Penal especial é, frequentemente, impossível ter ou atingir o conhecimento do injusto, exceto através do conhecimento da lei penal.
Se as peculiaridades das sociedades complexas impulsionam a flexibilização dos critérios de imputação e fomentam uma nova dinâmica legislativa com nítido exagero na formulação de normas penais incriminadoras de preceitos fragmentados, essas mesmas peculiaridades devem ser analisadas, por coerência, no campo do direito penal econômico, em que se chega ao extremo de proibir que se guarde lenha ou carvão, sem licença da autoridade competente. Nessas hipóteses, cuja incidência está atrelada à complexidade da construção normativa do tipo e seus infindáveis e abertos complementos, o conhecimento do injusto relaciona-se ao conhecimento da lei de tal modo que a ignorância quanto a esta acarreta, inevitavelmente, a ignorância quanto àquele.
Diante de tão complexo quadro, o tratamento legal a ser dado ao erro de proibição, na “especial esfera do Direito Penal Econômico”, deve seguir a máxima de que a ignorância da lei acarreta a ignorância do injusto, devendo-se ter como parâmetro para a averiguação da (ausência de) culpabilidade do autor os níveis de reflexão e informação empregados por ele para alcançar o conhecimento do injusto.
Pode-se concluir, assim, que na maioria dos casos em que o autor age confiando em informações repassadas por profissionais em determinadas áreas (seguindo uma orientação jurídica acerca do enquadramento de determinada empresa em regime tributário mais vantajoso, por exemplo), o erro de proibição apresentar-se-á como inevitável, razão pela qual a isenção de pena, como decorrência do princípio da culpabilidade, também deverá ser inevitável.
Filipe Maia Broeto é advogado criminalista e professor de direito penal. Mestrando em Direito Penal Econômico (Unir/Esp), especialista em Direito Penal Econômico (PUC-Minas) e autor de livros e artigos jurídicos, publicados no Brasil e no exterior.
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