• Cuiabá, 12 de Abril - 00:00:00

Cartas Viciadas

O viver democrático é um dos mais difíceis para ser vivido. Falam-se a respeito dele, defendem-no com palavras, e até com gestos, ainda que raros, e expressam-se a vontade de mantê-lo firme e sólido. Não percebem que o óbvio, sequer, fora notado. Afinal, esse viver, assim como tantos outros, está longe, bastante longe de ser algo inquebrável, irretocável, permanente e para sempre. Nada disso. Pois a democracia jamais virá, ou veio servida em uma bandeja. Tampouco está pronta e acabada.

Ela precisa ser regada, assim como se faz necessário e imprescindível regar o jardim à frente da casa ou no coração da cidade, ou em seus arredores, sem o qual jamais virá a florir, e sem esse desabrochar, o perfume da liberdade se evapora, perdendo-se entre nuvens cinzentas da desesperança. Tudo, portanto, fica sem brilho, inclusive o dos raios solares, bem como os da lua, cujos surgimentos pouco ou quase nada afastarão com a escuridão do autoritarismo, da irresponsabilidade e do ego da intolerância, contrariando sobremaneira a pregação humanitária ou patriota.  

Dizer-se humanitário ou patriota não é o mesmo que sê-lo, uma vez que este ser, ao contrário do que se possa imaginar, requer comportamento apropriado. Cristo jamais ficou apenas no disque-disque, agiu humanitariamente, e sacrificou-se pelo bem de seu povo, de sua comunidade, sem ter sido Policarpo Quaresma, embora tenha feito tudo com entusiasmo. Igualmente não basta se apresentar como democrata, necessário se faz agir verdadeiramente como tal.

Lutar para que a vida em democracia seja vivida por todos, pois o referido viver não se realiza com meia dúzia de sujeitos. Uma parte não é o todo. Nem o todo existe desacompanhado de suas partes. Este é o ponto. Ponto que requer atenção dobrada, redobrada, e infinitamente olhada. Isto porque a democracia é uma eterna construção. Constroem-na, ainda que ora ela venha ser paralisada, recuada, pois a toda hora desejos, vontades e necessidades aparecem, e terão que ser contemplados.

Ainda que venham a demorarem a ser alcançados, e, geralmente, demoram mesmo, pois não é nada fácil o viver em democracia, e um de seus óbices, talvez o maior deles, a intolerância, alimentado pelo preconceito. O que realça um dos desejos mais mesquinhos, o de excluir outrem por meio das mais perversas violências. Reforça-se, assim, a impunidade.

Permanece a impunidade quando a legislação, as regras, as normas e o estatuto do Estado não são respeitados. E, por conta disso, destrói-se o que se avançou em termos de democracia. Esta exige, entre outras coisas, vigilância por parte da população. Vigia-se tudo e todos. Tarefa igualmente difícil. Embora não seja impossível de ser realizada. Ainda que se tenha, dia a dia, registro da não fiscalização, em especial quando se predomina o espirito de torcedor.

O legislativo ignora uma de suas principais obrigações, o Judiciário esquece-se de zelar pela Constituição, e o Executivo é utilizado em proveito de poucos. Inexiste o fiscalizar, e os órgãos responsáveis diretos pelo vigiar, fazem vistas grossas. Também, pudera os que são levados para chefiar tais órgãos e instituições passam pelo crivo de aceitação de quem devem ser fiscalizado.

Cria-se, então, uma teia de compadrio, de apaniguados, com resultado catastrófico: as polícias deixam de ser de Estado para serem de governo, juízes passam a agir como defensores de alguns personagens, os integrantes dos Ministérios Públicos, advogados dos governantes de plantão, e o advogado da União age como se fosse o do governo. Imperioso, portanto, jogar no lixo as cartas já viciadas, e adotar outras, saídas do pacote intacto. Eis, aqui, uma necessidade urgentíssima, infinitamente mais do que o voto impresso. É isto.   

 

Lourembergue Alves é professor universitário e analista político.       



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