Ao acordar, sempre bem cedinho, dirigia-se a janela do quarto, enquanto aguardava pelo café da manhã, que lhe era servido em uma das salas do seu apartamento, no nono andar do edifício erguido bem na esquina, cuja vista era bastante privilegiada. Abriu-a, mas não pudera ver o que estava habituado a ver: prédios, telhados, ruas, árvores e pessoas e carros em movimentos quase sincronizados. Levou uma das mãos ao próprio rosto, e esfregou os olhos. Nada, porém, adiantou.
Continuava sem enxergar coisa alguma. Havia uma explicação. Tinha que haver. Talvez. Quem sabe, ou não. Tudo estava encoberto por um enorme véu. Véu de cerração. Ou seria o de fumaça? Oh!... Não sabia ao certo. Certeza era de que o negativo saíra de uma máquina possante e revelada por mãos habilidosas de profissional do ramo. Mesmo assim, a dúvida com relação aos porquês. Isto impedia a identificação real da situação, ou seriam das situações, ou o das versões daquela. Tamanha a força da anfibologia. Reforçada pelo malabarismo com as palavras. Palavras que, ao contrário de reduzirem, aumentam a dimensão do campo das incertezas.
Incertezas vendidas como se certezas fossem. Cotidianamente massificadas com disparos de mensagens e postagens. Ao ser massificado, muita gente acreditou, sem que tivesse tido acesso ou, se acesso tivera, não se deu o trabalho de analisar a foto registrada da janela. Deixou, portanto, de perceber a ambiguidades, a duplicidade de sentido. Duplicidade de sentido não apenas em uma construção sintética. Mas também na construção do quadro das realidades. Pois o real fora substituída pela versão. Versão que se transformou em verdade.
Ainda que nada se tenha nessa direção. Pois, durante a discussão ou bate-boca, a retórica assumiu o lugar de protagonista. Protagoniza-se sozinha, ao passo que o fato e o acontecido foram esquecidos, e, mesmo assim, se aceitou a anomalia, a exemplo de um inquérito mal feito, sempre com o propósito de beneficiar o réu, a despeito de indícios, rastros e relatórios de órgãos, como os do COAF, antes de sê-lo proscrito ou jogado em um canto do sótão da administração pública federal. Envolvida, embora beneficiada com depósitos em conta, sem imunidade, não tem o nome na lista de investigados.
Prossegue-se a rachadinha, que nada tem a ver com o rachar as despesas, nem de modo proporcional, pois sempre tem alguém que fica com a maior parte do dinheiro público desviado. Transcende gerações e cria braços em núcleos familiares distintos. Erário que escoa pelo ladrão, escapole em disfarces, e volta para as mãos do agente-mor, depois de lavado ou na compra de imóvel ou de objetos, até de chocolates.
Caminhos todo traçados, ainda que não fosse à moda daquela história de João e Maria, em que todo o percurso fora marcado com “as pedrinhas brancas que brilhavam ao clarão da lua” e com “as migalhas de pão”, e, ainda assim, a investigação não avança, nem chega a ser concluída. Tem-se a impressão que, lá dos céus, o anjo da guarda deles é mais forte do que o da maioria. Só pode ser isso. Não tem outra explicação. Daí o sigilo eterno, investigação sem fim, no instante em que autores da denúncia não a formalizam, talvez porque alguns deles se encontram presos no invólucro do jogo duplo, e os apuradores, perdem-se entre servir a um ou a outro senhor.
Vida que segue. E segue, com a não punição dos acusados, tanto que um deles, e logo-logo também os outros quatro, já retornou ao seu posto, o qual fora afastado. Não tenham dúvidas, são as ondas mansas e traiçoeiras da impunidade. Ondas, alimentadas pela ausência de ações de quem deveriam agir, e não agem, promovem a erosão, a qual remove tudo, até a superfície que dá guarida a esperança, no instante em que um véu de fumaça encobre o que jamais deveria ser acobertado. Ou será o de cerração? Deixa pra lá. Ah!... Não deixe não. Senão, daqui a pouco, nada será possível distinguir, pois está embaralhado, camuflado. É isso.
Lourembergue Alves é professor universitário e analista político. E-mail: lou.alves@uol.com.br.
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