Ouve-se aquilo que se quer ouvir. Vê-se também o que se quer. Estas frases são reveladoras. Revelam uma prática bastante presente no lidar cotidiano com pessoas. E isso nos mais variados lugares. Independentemente do tempo. Pois, neste caso, o ontem tem a cara do hoje, e o hoje, que será pretérito no dia seguinte, terá igual feição do amanhã. Sempre foi assim. Infelizmente, sempre será. Não é por acaso que a versão, em muitas ocasiões, se passa pelo fato. Fato que jamais se altera ou venha a mudar, ainda que se deseje que ele mude.
Diferentemente, portanto, da versão, a qual se altera de acordo com as conveniências, com as vontades. Explica-se o porquê é este, não aquele, o objeto do discurso político. Daí, claro, a mentira ser a protagonista do jogo político-eleitoral. Alguns atores se atrevem a dizer meias-verdades, mas estas são, de fato, mentiras inteiras. Mentiras, cujos ecos as fazem repetir e as replicarem em todas as instancias. Bem mais agora, com o surgimento das redes sociais. Transformadas, infelizmente, também em escoadouros de maus-humores. Então, extensão do espaço das lutas político-partidárias.
Vê-se e ouve-se de um tudo. Sempre sob o escudo da liberdade de expressão. Como se a tal liberdade – tão cara a democracia - pudesse ser confundida, tomada pela permissão a ataques, agressões e impropérios. Definitivamente, não poderá. Nem deveria ser confundida. Embora tenham quem a utilize como guarda-chuva para se esconderem, e escamotearem seus maus-feitos, com o propósito de fugirem de quaisquer acusações penais.
Assim como fariam com cargos, caso os ocupassem. Pois estes são mesmo enormes e avantajados guarda-chuvas. Galizés se fazem passar por galos formados e filhotes, pavão emplumado. Assim tocam a vida, não estão nem aí para as próprias agressões a “res publica”, ao espaço público. Aliás, não foi outra cena que se viu e se ouviu na famosa reunião ministerial do dia 22 de abril, gravada em vídeo com duração de 1h56, cuja liberação foi acertadíssima, até para que cada contribuinte possa fazer sua avaliação.
Os palavrões foram o de menos. Próprios de alguém, cuja riqueza vocabular cabe em uma caixinha de fósforos, e, mesmo assim, sobrará vaga em demasia na tal caixinha. O absurdo da tão famosa reunião é ver o espaço público transformado em privado, com a falta de decoro escancarado. Ministro de Estado pregando a imoralidade, com o “passar da boiada”, com mudanças “em todo o regramento e simplificando normas” enquanto a “imprensa está voltada ao coranavírus”. Uma ministra “prevendo” “prisão de governadores e de prefeitos”.
Curiosamente, depois de ter recomendado respeito a “valores”. Valores não expressados em palavras, mas, quem assistiu ao vídeo, logo os identificariam. Outro ministro dizia odiar “o termo povos indígenas, povos ciganos”, um pouquinho antes de reconhecer: “a gente tá perdendo a luta pela liberdade”, e, em seguida, confessou: “por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia, começando pelo STF”. Tudo isso à frente do presidente da República que, ao contrário de distribuir pitos em seus subordinados, preferiu corroborar com as falas grosseiras, sem esconder a preocupação por sua “família toda” “ou (seus) amigos”, e, por causa dela e destes, iria sim fazer as trocas que ele achar necessárias, pois “a PF não” lhe “dá informação”, as “inteligências das Forças Armadas que (também) não” lhe passam “informações”. E, assim, desabafa: “não dá”. Por fim, confessou o inconfessável desejo: “vou interferir”.
Pronto! Situação vexatória. Vexatória, mas os demais presentes da reunião não se sentiram incomodados, nem por meio de um simples gestos, diante de tamanho desrespeito ao ambiente público, a “res publica”. Falta de decoro que, sequer, fora percebido. Despercebido, inclusive, por muitos que disseram ter assistido ao vídeo da reunião. Saíram do foco. Afinal, ouve-se aquilo que se quer ouvir, vê-se também o que se quer. Aquilo que tem interesse em ouvir e a ver. Mal sabem que ver não é o mesmo que enxergar, ouvir está longe de escutar, como diria as avós: “entrou num ouvido e saiu pro outro”. É isto.
Lourembergue Alves professor universitário e analista político. E-mail: lou.alves@uol.com.br.
Ainda não há comentários.