Mesmo sob o signo da restrição, pessoas se deslocam de um lado para outro da cidade. Neste ir e vir tornam-se comum os encontros e reencontros, e estes e aqueles, possibilitam o ajuntamento, a aglomeração. O que contraria a recomendação oficial. Ainda que não seja caso de polícia, como fora na ditadura, sem a pandemia do coronavírus. Embora, na época, o vírus era bem outro. Tanto ou mais letal. Pois, entre outras coisas, destruiu o processo incipiente de formação política da sociedade que havia. O regime, felizmente, caiu. Finalmente, “o rubro lampejo da aurora”. Não era uma “aurora sem dia”, parafraseando aqui o título de um dos mais belos contos de Machado de Assis. “Eia, pois, avante!” – diz um segundo trecho do hino da República.
Trecho bastante específico: conclama a todos aproveitarem. Aproveitarem o viver sob as asas abertas da liberdade, outrora impedido. Afinal, os Atos Institucionais do período, que sobrepunham até a Constituição, estão sepultados. Sepultados, cujos ataúdes são de concretos. Não o moderno à base de cimento. Mas, isto sim, o romano, contendo um mineral chamado tobermorita aluminosa (resultado de cinzas vulcânicas, cal e água do mar), que fica cada vez mais forte com o passar do tempo. Portanto, sem chance alguma de tais atos, em especial o AI-5, serem resgatados.
Mesmo que tenha quem os queira trazê-los de volta, defendendo seus resgates, e tem, em torno de si, todo um coro, que dá eco a seus desejos. Desejos esquizofrênicos. Felizmente, a anos-luz de distância de qualquer possibilidade de serem realizados. Até porque as realidades vividas são bem distintas das registradas no passado, e os agentes sociais de hoje, em sua maioria, não são mais os mesmos, ou, se os são, tornaram resistentes a determinadas doenças. Evitam-se empolgar, assim, pelas ondas pretéritas do “ame-o ou deixe-o”. Ainda que não possuam tanto o filtro necessário como o olhar crítico imprescindível, e, em razão disso, talvez, por vezes, veem a si mesmos jogados de um lado para outro, quase na condição de gangorra, até acomodados em uma arena, divididos em torcida de “A” ou de “B”.
Condição preocupante. Preocupa-se não apenas pela divisão do país, mas igualmente porque essa divisão impede o avançar da vida democrática, pois exacerba o ataque mútuo, o que reforça o preconceito e a intolerância. Duas armas que detonam todos os caminhos que levam a democracia, e, ao serem detonados, perdem-se as referências do bom viver, em comunhão. E para complicar, obviamente, agiganta a desigualdade social, a qual é alimentada pelo alto índice de corrupção ainda presente. Índice sempre em alta pela impunidade reinante. Reinante porque há uma teia que a favorece. Favorece-a o tripé de sustentação do Estado nacional: cartorialismo, patrimonialismo e corporativismo. Tripé que não pode ser vencido, demolido sem que seja por meio da reforma política, uma vez que esta promove a mudança do próprio Estado, com o seu redesenho, configuração, levando de roldão os privilégios existentes, e a tão necessária rediscussão sobre as competências dos poderes constituídos, dos órgãos que os auxiliam e fiscalizam.
Tarefa, contudo, infelizmente, não provável que venha um dia, por aqui, acontecer. Afinal, ninguém quer largar as tetas da vaca. Mesmo que a vaca-Estado esteja completamente contaminada, ainda que não seja por encefalopatia espongiforme transmissível (BSE), embora a sua doença, tal como esta, afete igualmente toda a população, em especial a sua maioria. Reagir a isto é uma atitude importante. Tarefa de todos, sem, contudo, a agressão das normas, da orientação científica, por mais que se viva em época do desconhecimento, da impotência frente ao vírus que se espalha a passos largos. Necessário se faz o quebrar sua corrente de proliferação. É isto.
Lourembergue Alves é professor universitário e analista político. E-mail: Lou.alves@uol.com.br.
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