“A política é um espetáculo” – iniciava deste modo a falar o tio, diante do olhar sempre atento do sobrinho e do quase desdenhoso do irmão. Eles estavam acomodados no sofá esparramado na sala em “L” de um dos apartamentos do décimo andar do edifício espremido entre a loja de eletrodomésticos e a academia, que tinham suas portas fechadas, mesmo àquela hora. Chovia muito, com a rua transformada em rio, cujas águas se mostravam incapaz de furar o bloqueio feito de lixo e dejetos com o fim de alcançar a galeria pluvial que um dia fora o córrego das estrelas. Não havia superfícies permeáveis, nem existia outra forma de expulsar toda a água acumulada, ameaçadora e desgovernada, que levava de roldão carros e as placas de dizeres auspiciosos: “não pisem na grama”. “Ajudem a manter sempre limpa nossa cidade”.
Reprise de um filme antigo, de igual “script”. Mesmo assim, nenhuma providência se tomava para diminuir o impacto das enchentes de março. “Faltou vontade política” – chegou a dizer o pai, em meio à taciturnidade do filho e o gesto desaprovador do irmão. “Triste destino... Herança maldita de desgovernos passados” – continuou pesaroso, enquanto o filho deixava escorregar a mão pelos seus cabelos, já grisalho. “A resposta da população virá das urnas...” – observou o filho. “Este ano tem eleição... Haverá troco” – arrematou o garoto. “Nem pensar... Temos que reconduzir o Alberto... Não podemos correr o risco do retorno da corja que saqueou os cofres públicos...” – vociferou o pai. “Aprovas a atual gestão?” – indagou-lhe o irmão. “Sim... Sem dúvida” - respondeu de pronto. “O que há de benfeitoria, papai?” “Muita coisa...” “Diga apenas uma, meu irmão”. “Ah!... Acabou-se a farra com os recursos...” – atalhou-se. “Quem garante?” – provocou o filho, diante do olhar reprovador do pai, o qual respondeu: “Tem-se, agora, um governo sério...” “É... Estamos vendo... Desastres ecológicos e a pobreza...” – balbuciou o filho. “Resultado das gestões passadas...” – retrucou o pai. “Mas... O que está sendo feito neste mandato?” – perguntou o filho. “Nada...” – antecipou-se o garoto. “Não seja ingrato...” – repreendeu-lhe o pai. “Eu... Ingrato!... Não mesmo...” “Você... Sim...” “Mas...” “Melhor não dizer nada”.
O pai acusava o filho, ao mesmo tempo em que socava o sofá. Não tinha mais o sorriso costumeiro. Estava irreconhecido. Silêncio sepulcral. “Comportamento de torcedor, meu irmão”. “Ah!...” – balbuciou-se. “Torce-se tão somente... Não percebe que essa sua atitude lhe subtrai a racionalidade, o poder da crítica...” “Não venha com o espírito professoral...” – resmungou-se, mesmo diante do ar reprovador do filho. “A política é um espetáculo” – voltava a dizer o irmão. “Todo espetáculo tem um público, e este não pode, nem deve ser formado apenas por expectadores, por torcedores...” O sobrinho se entusiasmava. O que deixou mais chateado o pai, que bufava. O irmão não se acanhou, ainda que fosse mais criança. “Torce-se para o time do coração, para o artista, para o tempo melhorar... Jamais para o político, tampouco para uma gestão, muito menos para dada agremiação partidária...” O sobrinho se encantava. “Nada de se transformar a cidade, o país em uma arena, onde as duas torcidas se acomodam a arquibancada, divididas entre Fulano e Beltrano... Condição de manobra, de refém das vontades de outrem... Ser apenas platéia não ajuda em coisa alguma...” O garoto não perdia um só detalhe, um só gesto. “Torcer, torcer... retira-lhe a posição de senhor, de co-autor e de sujeito, e o leva a curtir e a ecoar os achismos, sem qualquer filtro, sem criticidade... Por isto, não enxerga os desacertos, e, quando estes são apontados, agride-se a pessoa de quem os apontou... Pois lhe falta a argumentação necessária para contrapor o dito... Empobrece, desse modo, a política, paralisa a democracia e afasta quaisquer chances de renovação, a qual nada tem a ver com a simples troca de rosto no álbum de fotografias” – concluiu-se. Cessava-se a chuva, deixando seus rastros. É isto.
Lourembergue Alves é professor universitário e analista político. E-mail: Lou.alves@uol.com.br.
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