• Cuiabá, 14 de Setembro - 2025 00:00:00

Família não é salvo-conduto para ferir: acolhimento salva vidas


Paulo Lemos

Há quem tente reduzir a discriminação dentro de casa a “opinião”. Não é.

Quando a rejeição nasce no próprio lar, ela transborda o privado e se torna problema de saúde pública, de direitos humanos e de democracia. 

Não há truque de linguagem que apague o que a experiência mostra com clareza: hostilidade cotidiana adoece, corrói o senso de valor e empurra muita gente para o isolamento. 

E, no entanto, a saída é conhecida — e exige menos teoria do que coragem: acolher. Reconhecer. Chamar pelo nome. Cessar as “brincadeiras” que ferem. Abrir espaço para existir. 

Amor, aqui, não é um sentimento nebuloso: é prática diária que dá segurança, reorganiza o pertencimento e devolve a possibilidade de futuro.

O discurso do “é para o bem” costuma vir travestido de zelo, mas o que ele produz é medo. Silêncios impostos, vigilância sobre o corpo e a linguagem, correções humilhantes, ameaças espirituais — tudo isso educa para a duplicidade, não para a maturidade. “Seu silêncio não vai te proteger”, lembrou Audre Lorde. 

O que protege é a verdade habitável: poder dizer quem se é sem pagar o preço da exclusão. Quando uma casa se torna território de escuta, algo decisivo acontece: a pessoa deixa de gastar energia para sobreviver e pode investí-la em viver. 

Parece simples — e é revolucionário.

Há um equívoco persistente: confundir amor com controle. 

Amor que humilha, chantageia e vigia não é amor; é medo com roupa de virtude e de verdade. 

Como tantas pensadoras lembram, amar é verbo: cuidado, compromisso, responsabilidade, respeito, confiança e conhecimento. 

É esse padrão ético — e não a retórica da “correção” — que protege vidas. No cotidiano, ele tem gestos muito concretos: usar o nome e os pronomes corretos, não relativizar dores, interromper piadas que inferiorizam, estabelecer um acordo familiar de respeito. 

E, quando o entendimento ainda não chegou, sustentar ao menos a proteção: ninguém perde por tratar com dignidade aquilo que ainda não compreende.

Também precisamos abandonar a fantasia de que só o sangue faz família. Muita gente encontra lares escolhidos — amizades, vizinhanças, comunidades — que acolhem sem a condição da semelhança. Isso não é “menos” família; é outra forma legítima de parentesco. 

A boa notícia é que, quando há ao menos um adulto que reconhece e apoia, já se produz um contrapeso afetivo poderoso. 

Esse adulto pode ser um pai, uma avó, uma tia, um professor, um líder comunitário. Uma única porta aberta faz diferença — e todos nós podemos ser essa porta.

O Brasil constitucional não autoriza crueldade doméstica. Dignidade e igualdade não terminam na soleira da nossa casa, e liberdade não confere licença para ferir. 

Se a fé que professamos não é capaz de virar cuidado concreto, talvez não seja Deus que estejamos servindo, mas o nosso próprio medo. 

“Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome”, escreveu Clarice Lispector. 

É isso: o desejo de existir em paz quase sempre começa sem nome, tímido. Para que floresça, precisa de solo, água e sol — precisa de uma casa onde a pessoa seja bem-vinda como é, não como deveria ser. 

O tempo, às vezes, transforma: há quem amadureça e aprenda a enxergar; há quem não consiga. Enquanto isso, que ninguém se perca de si. 

Que o ódio dos outros não encontre guarida dentro da gente. Que possamos repetir, como um pequeno rito íntimo, até que vire carne: “Eu sou digno(a). Eu existo com valor. Eu sou amado(a), mesmo quando tentam me negar.”

Não há neutralidade quando a dignidade está em jogo. 

Cada um de nós, na posição que ocupa — parente, educador, gestor, líder religioso, amigo —, decide todos os dias se será ponte ou muro. Escolher acolher não é modismo nem concessão ideológica; é compromisso civilizatório. 

É impedir funerais, visíveis e invisíveis. É dizer, com serenidade e firmeza, que na nossa área de influência ninguém será ferido “em nome do amor”. 

Porque amor, quando merece esse nome, não precisa de vítimas para existir. Ele acende luz, não apaga pessoas. E a sociedade que queremos começa quando transformamos essa frase em prática — dentro de casa.

 

Paulo Lemos é advogado e escritor em Mato Grosso.

paulolemosadvocacia@gmail.com




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