Gonçalo Antunes de Barros Neto
José Barnabé de Mesquita aprendeu cedo que seu nome não cabia nas linhas. Nos formulários, “José Barnabé” parava no meio da vida; “de Mesquita” ficava órfão no campo seguinte. Ria disso como quem observa uma vitrine: o mundo, às vezes, não comporta o que nomeia.
Trabalhava no fórum de uma cidade quente, onde o relógio e o ventilador conspiravam contra qualquer ideia de eternidade. Não era juiz, nem promotor. Era o homem do protocolo, o que conhece os labirintos, os carimbos, as portas que quase todo mundo confunde. Fazia o mesmo percurso desde antes da reforma do prédio: ônibus às 6h12, pão na padaria do Tolentino, o “bom dia” que não estava na lei, mas que regulamentava os ânimos.
Entre pilhas de processos, José colecionava frases que encontrava perdidas em petições: uma citação de Agostinho sobre o tempo que “é distensão da alma”; uma nota de rodapé lembrando que “o essencial não é o que nos acontece, mas como respondemos” — que ele atribuiu, com quase imprecisão honesta, a algum estoico. Não estudara filosofia, mas sabia reconhecer quando uma ideia passava de mansinho, pedindo menos ruído e mais lugar.
Certa manhã, na mesa um processo novo: “José Barnabé de Mesquita x Estado”. Teve a sensação de que alguém o havia desdobrado em réu por distração cósmica. Abriu. Era homônimo, outro José com uma história de hospital e papelada. Ainda assim, um estranho puxão: se o nome é o trilho por onde a vida corre, que trem era aquele circulando com sua placa?
Enquanto pensava, uma senhora se aproximou, apertando uma pasta com duas mãos: “Moço, perdi o número do meu processo, só sei que é sobre remédio.” José lhe explicou o caminho, escreveu num papel a sala, o horário, e acrescentou: “Se pedirem, diga que foi o José do protocolo quem mandou.” Não era influência; era responsabilidade de vizinhança. Há decisões que não estão no Diário da Justiça: uma direção correta, um copo d’água, uma espera menos áspera. Ele chamava isso de justiça, em voz baixa.
Na hora do almoço, voltou ao caso do xará. Notou prazos correndo mais depressa que ônibus lotado. Pensou no que lera: que a verdade, no processo, é uma aproximação cooperativa. Gente, papéis, tempo. Tudo sujeito a falhas. No final, alguém carimba uma palavra que decide o que fará sentido para outra pessoa. A responsabilidade do carimbo é a metáfora menos poética e mais grave que ele conhecia.
À tarde, um temporal derrubou a energia. Salas escuras e corredores cheios de perguntas. José, que sempre desconfiou de eternidades, respirou aliviado como quem reencontra o século XIX. Foi à gaveta e puxou o livro de protocolo ainda em papel. Reconstituiu entradas, reenviou pessoas às mesas certas, anotou à mão o que não podia perder. Descobriu, com um prazer que não confessaria, que a memória humana é um tipo de prova: falha, sim, mas com boa-fé verificável.
Quando a “luz” voltou, a cidade parecia outra. O processo do homônimo reapareceu. Havia uma petição pedindo urgência. José fez o que podia dentro da linha: garantiu que chegasse aonde devia. O resto não lhe cabia. A filosofia que ele praticava — e que nenhum professor lhe ensinara — consistia em separar as coisas que dependem de suas mãos daquelas que pertencem aos altos andares do edifício. Era a sua “doutrina dos dois escopos”: o do ofício e o do mundo. No do ofício, esforçava-se por ser preciso; no do mundo, por não amargar.
Na saída, olhou para o céu. A cidade pingava luzes e barro. José pensou no outro José. Pensou também em si: em quantas versões de José existem numa vida só — o que carimba, o que espera, o que ajuda, o que é ajudado. Deu-lhe vontade de escrever uma sentença para si, apenas para brincar com a forma. No guardanapo da padaria, rascunhou: “Vistos, etc. Defiro a existência do requerente por mais vinte e quatro horas, renováveis enquanto houver coragem de atender o próximo. Publique-se no olhar.”
Dobrou o papel, não mostrou a ninguém. Em casa, antes de dormir, colocou o guardanapo na gaveta das meias, ao lado de documentos que, ao contrário de sentenças, nunca transitam em julgado. E adormeceu com a impressão de que, naquela noite, o nome coube inteiro na linha.
Gonçalo Antunes de Barros Neto é ocupante da cadeira 7 da Academia Mato-Grossense de Letras e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso – IHGMT.
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