• Cuiabá, 19 de Agosto - 2025 00:00:00

Desobedecer para viver


Paulo Lemos

Essa talvez seja hoje a mais urgente das prescrições clínicas, a mais indomável das éticas, a mais humana das insurgências. 

Porque há algo profundamente equivocado em um mundo que transforma sofrimento em disfunção, tristeza em diagnóstico, silêncio em patologia, e a dor legítima de existir em estatística psiquiátrica. 

O problema não está no sujeito que sofre — o problema é um mundo que o adoece e, depois, exige que ele se adapte.

A clínica da desobediência começa quando deixamos de perguntar "como ajustar o paciente à realidade?" e passamos a perguntar "que realidade é essa, afinal, que exige tantos ajustes?". 

O sofrimento, quando não é escutado, se torna sintoma; o sintoma, quando não é acolhido, se torna silêncio; e o silêncio, quando forçado, se torna morte subjetiva. 

Por isso, talvez seja preciso reaprender a escutar — mas escutar como quem escava uma mina, como quem acolhe o indizível, como quem sustenta a dignidade de um grito que não encontra tradução no discurso da normalidade.

Freud ousou escutar a histeria, quando o mundo só via desordem. Lacan ousou escutar a falta como estrutura, o gozo como furo, o sujeito como exílio. Foucault nos mostrou que o saber cura, mas também vigia. Deleuze e Guattari disseram que delirar não é perder-se — é escapar da captura. Guattari, nas margens das instituições, viu a loucura como floresta e não como prisão. 

Todos, a seu modo, disseram: não há clínica sem política. Não há análise sem escuta do contexto. Não há ética sem desobediência ao que nos violenta.

A clínica da desobediência não quer curar o diferente — quer abrir espaço para que ele exista. Não quer corrigir o erro — quer compreender o desvio como dança do desejo. Não quer reinserir o sujeito no sistema — quer perguntar se o sistema merece esse sujeito. 

Porque há vidas que adoecem não por fracasso pessoal, mas por excesso de lucidez. Há sofrimentos que são, antes de tudo, denúncias vivas de um mundo que já não oferece lugar para o humano. 

E o clínico, nesse cenário, é menos um técnico e mais um companheiro de travessia. 

Alguém que não indica caminhos prontos, mas sustenta a queda, a pausa, o tropeço — e ali, no meio da queda, aposta que algo pode ainda nascer.

Desobedecer é dar nome ao que nunca teve nome. É escrever o próprio dicionário. É sustentar a dor sem transformá-la em mercadoria. É escutar o sintoma como quem escuta um poema que sangra. 

É dizer não ao mundo como está e sim ao mundo que ainda não existe, mas que pulsa no inconsciente coletivo, nos corpos que dançam fora do compasso, nas vozes que desafinam a harmonia da obediência.

Não se quer a paz dos mortos, nem a saúde dos normalizados. A vida viva. O sujeito que delira e dança, que tropeça e canta, que sofre e sonha. 

Porque não se trata de ser feliz o tempo todo — trata-se de ser inteiro, mesmo que fragmentado. Ser livre, mesmo que errante. Ser verdadeiro, mesmo que ninguém entenda.

A clínica da desobediência é aquela que recusa a pressa, o protocolo, a receita pronta. 

É aquela que sabe que um choro pode ser mais revolucionário do que mil palavras, que um silêncio pode ser mais eloquente do que todos os diagnósticos. 

É aquela que respeita o tempo do desejo, que sustenta a espera, que não reduz o sujeito àquilo que ele faz ou produz. 

É a clínica que ousa dizer: talvez você não esteja doente — talvez você esteja apenas sendo esmagado por um mundo que não reconhece sua forma de ser.

E se for isso, então sim: desobedeça. Desobedeça às normas que te sufocam, aos papéis que não te cabem, às exigências que te amputam. Desobedeça ao roteiro que te foi imposto. Invente. 

Reinvente. Tropece. Recomece. Faça do seu sintoma um poema. Faça da sua dor um manifesto. Faça da sua existência uma travessia que não precisa de permissão.

Porque viver, no fim das contas, é isso: recusar a domesticação. Insistir no desejo. Apostar que o impossível também é humano. E que a liberdade — ainda que doa — vale mais do que qualquer adaptação.

 

Paulo Lemos é advogado e aprendiz de outros saberes em Cuiabá-MT.

paulolemosadvocacia@gmail.com 




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