No bar de seu Onofre, em Vila Isabel, a manhã se ergue como um violão apoiado na cadeira: cordas ainda quentes do baile anterior. O balcão carrega marcas de copo como quem coleciona luas, e a vitrola pede agulha nova. É quando entra Laura, de vestido azul, trazendo uma caixa de sapatos e um envelope num bolso que teima em esconder o calor. Cumprimenta com os olhos, escolhe a mesa encostada na parede de azulejos, pede “café sem açúcar, mas com coragem” e anuncia, sem dizer o nome, que “hoje ele faz anos”. Sobre ela, espalham-se recortes, guardanapos com versos e fotos de um homem magro de terno claro e chapéu — sorriso natural, desses que os fotógrafos ainda não sabiam pedir.
O narrador — talvez garçom, carteiro, cronista ou apenas um copo atento — percebe que ali se cumpre um acerto antigo. Seu Onofre liga a vitrola: o chiado abre passagem para uma canção de despedida. Não é preciso nomeá-la; basta o clima de último pedido que paira como fumaça lenta. Laura toca a beirada da mesa e diz: “Foi aqui que ele escreveu metade de uma noite. A outra metade ficou comigo. Vim devolver.”
Dentro do envelope, uma carta em tinta de caneta-tinteiro, caligrafia firme como rua bem calçada. O narrador lê com licença. Não reproduz as frases — Vila Isabel sabe que certas letras são santos de procissão —, mas diz o essencial: o “último desejo” pede gentilezas. Que a lembrança não vire ferida nem mentira, que a vida guarde sua cadência honesta, que o amor, ao passar, deixe as coisas em ordem — vaso com flores, janela fechada para a poeira, luz apagada sem estardalhaço. Se um dia perguntarem, que a resposta cuide mais do presente do que do passado. Um testamento de delicadezas, um modo de existir cantado por quem sabia dizer.
Laura separa três fotografias. A primeira, ele no sofá com violão: “Para esta parede que já ouviu de tudo.” A segunda, no boteco com amigos: “Para seu Onofre, guardião da ciência do balcão.” A terceira, numa calçada de madrugada: “Para o carteiro, caso alguém procure notícias.” Ao narrador, confessa sem vaidade: “Amei. Às vezes a gente ama como se escreve: apagando muito. O que fica é o que conseguimos dizer sem soberba.” A canção termina e instaura um silêncio espesso, desses que pedem mãos cuidadosas para não derramar o copo.
Antes de partir, Laura devolve a caixa à memória do bar e entrega o envelope ao narrador. “Leve à Rua dos Amores, número nenhum. Você sabe chegar.” Ele vai. A rua não tem placas, apenas árvores com nomes de gente. Abre o envelope, deixa o vento ler. Entende que desejos derradeiros, quando são generosos, se desdobram em pequenos cuidados: fechar portas com delicadeza, não esmagar as formigas do jardim, falar baixo quando o outro se cansa, lavar os copos antes de ir embora.
À noite, de volta ao bar, as fotos estão alinhadas como oração. Laura se dissolveu na rotina do bairro; um cachorro de nome de estrela acompanha o narrador até a esquina e desiste, como fazem os cães e as lembranças. O bar retoma seu ofício de guardar canções e distribuir medida: ali aprende-se que a vida tem compasso, que a despedida pode dançar se o passo for justo. Este conto, no fundo, é uma elegia à música e à delicadeza — à arte de transformar um último pedido em ética cotidiana. Em Vila Isabel, o amor e a memória sobrevivem nos gestos mínimos, e a canção, mesmo quando não dita, continua soprando por trás dos prédios.
E, porque toda canção guarda um rosto, lembro Noel Rosa e sua Cecy — a moça que virou ritmo íntimo nas madrugadas de Vila Isabel. Era com ela que o “poeta da Vila” aparava as farpas do mundo e afinava o coração antes de encostar o queixo no violão. Nos instantes em que a boemia fazia barulho demais, Cecy era o intervalo de silêncio onde cabia o verso certo; nos dias em que a doença encurtava o fôlego, era a mão que segurava o compasso para que a melodia não caísse.
Assim, naquele bar, onde a memória guarda o que a vida não quer esquecer, a presença de Cecy aparece como passagem secreta: abre-se e vemos Noel sorrindo torto, assinando um guardanapo, corrigindo uma rima, recomeçando uma esperança. Talvez por isso o último desejo soe tão generoso: quem amou assim aprende que a despedida só existe para quem não transforma o amor em cotidiano — e Cecy, para Noel, foi justamente isso: o cotidiano que salvou a poesia.
É por aí...
Gonçalo Antunes de Barros Neto é da Academia Mato-Grossense de Letras (Cadeira 7) e do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso – IHGMT.


Ainda não há comentários.