• Cuiabá, 16 de Outubro - 2025 00:00:00

Ciber-Apedrejamento - O Padre e a mulher (adúltera?)

O recente e polêmico caso do padre flagrado em sua residência com uma paroquiana, que se tornou viral, ressoa com uma antiga narrativa, notadamente o "Caso da Mulher Adúltera" (João 8:1-11), se na antiguidade a mulher era arrastada à praça pública para ser julgada pela moral e pela Lei de Moisés, hoje o "palco" é a cena virtual, onde o julgamento público ocorre por meio de comentários, compartilhamentos e vídeos, mas com uma distinção crucial: os limites impostos pelo Estado de Direito. Esta tradição brasileira de diminuir as mulheres, onde o homem é visto como viril e a mulher como pária, também se manifesta negativamente no espetáculo midiático.

Ambos os cenários são marcados pela cena teatral da condenação moral e pela hipocrisia (visto que a lei mosaica também exigia a punição do homem no adultério, mas só puniam a mulher), contudo soma-se na atualidade, a adicional da gravidade da prova ilícita obtida pela invasão.

A Modernidade e a Inviolabilidade do Asilo, enquanto a narrativa bíblica enfoca a misericórdia e o questionamento moral de Jesus ("Quem de vocês estiver sem pecado, que atire a primeira pedra!"), o caso do padre se choca diretamente com as bases do nosso sistema legal, em especial o Artigo 5º, XI, da Constituição Federal, que declara de forma categórica: "a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial". Esta garantia fundamental é o cerne da proteção à intimidade e à vida privada.

O ato de “flagrar” a situação envolveu a entrada no domicílio do padre ou na casa paroquial, sem o seu consentimento e sem se configurar nenhuma das exceções constitucionais, isso representa, em tese, o crime de Violação de Domicílio, qualificado por duas ou mais pessoas, tipificado no Artigo 150, §1º, do Código Penal com pena de seis meses a dois anos de detenção, além da pena correspondente a violência, e pelo visto talvez ainda a materialização do crime de dano, artigo 163 do código penal, com pena de um a seis meses de detenção, eis que podem ter sido quebrados alguns bens na casa, o que acarretaria a somatória das penas.

No Tema de Repercussão Geral 280 julgado pelo STF, estabeleceu-se que a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita quando amparada em fundadas razões que indiquem uma situação de flagrante delito. No contexto do pseudo flagrante do padre, a ação em si – um relacionamento extraconjugal ou, a quebra do voto de celibato – não configura, por si só, um crime permanente que justificasse uma invasão. Diferentemente, por exemplo, de tráfico de drogas, o ato em questão é de natureza moral/canônica e cível, não criminal, O celibato é uma obrigação canônica, e não uma lei criminal, visto que a profissão é reconhecida pela CBO – Classificação Brasileira de Ocupações.

Portanto, a invasão (ou entrada sem consentimento) por terceiros (fiel, noivo, ou qualquer pessoa) não encontra amparo nas "fundadas razões" exigidas pela tese do STF, que se dirige principalmente a agentes policiais ou autoridades. Mesmo que a invasão tivesse sido feita por autoridades, a ausência de um crime em flagrante tornaria a prova ilícita e a conduta dos agentes passível de responsabilidade criminal, cível e administrativa. O direito à inviolabilidade do lar é absoluto contra intromissões arbitrárias, seja do Estado ou de particulares.

Além da violação de domicílio, a divulgação das imagens e vídeos levanta a questão da violação da intimidade e do direito à imagem (Art. 5º, X, CF e Art. 20 CC). O ato de filmar ou gravar a situação dentro de um domicílio, sem consentimento, e divulgar tal conteúdo, pode gerar:

·      Dano Moral: O Artigo 5º, X, da CF garante a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem, assegurando o direito a indenização. O Código Civil, Art. 20, veda a exposição da imagem de alguém sem permissão, caso atinja sua honra ou boa-fama.

·      Crime de Divulgação de Conteúdo Íntimo: Embora o Art. 218-C do Código Penal (Estupro Digital) se concentre na divulgação de "cena de sexo, nudez ou pornografia" sem consentimento, dependendo do teor exato do vídeo divulgado.

·      A conduta poderia se enquadrar (ou se aproximar) de crimes contra a honra (difamação ou injúria).

·      Crime de constrangimento ilegal, artigo 146 do Código penal, com a pena em dobro por haver concurso de pessoas, com pena de detenção de 6 meses a dois anos.

·      Crime de violência psicológica contra a mulher, que consiste em causar dano emocional que prejudique ou perturbe o desenvolvimento da mulher, usando meios como ameaça, humilhação, manipulação ou isolamento. Art. 147-B do Código Penal brasileiro, pena de reclusão de seis meses a dois anos.

No que tange a sites, blogs públicos ou pessoais, home-pages e páginas pessoais de redes sociais, inclusive compartilhamento em aplicativos de mensagens, só caberia a exclusão de Ilicitude para publicações de natureza jornalística, científica, cultural ou acadêmica, desde que com adoção de recurso que impossibilite a identificação da vítima. A ampla divulgação do nome e da imagem do padre e, possivelmente, da paroquiana, nas reportagens de natureza sensacionalista, anula esta exclusão, gerando potencial responsabilidade civil e/ou criminal.

A controvérsia do padre, embora fervilhando no plano moral e eclesiástico, é, sob a ótica do Direito Penal e Constitucional, um forte exemplo de como a busca por justiça privada ou o sensacionalismo pode gerar ilicitudes mais graves do que a conduta moralmente condenável que se pretendia expor.

No caso bíblico, a condenação era à morte. No caso do padre e da paroquiana, a condenação é a morte da reputação, facilitada pela exposição ilegal de sua intimidade, até porque adultério não é crime no Brasil, desde 2005, gerando um robusto direito à indenização por danos morais e materiais, além de potencial responsabilidade criminal a quem divulgou o material íntimo.

A lição do Direito, nesse caso, é que a indignação moral não é uma carta branca para a violação dos direitos fundamentais alheios. A inviolabilidade do domicílio é um direito absoluto contra a arbitrariedade, e sua transgressão, mesmo que motivada por um pretenso "acerto de contas" ou indignação religiosa, é, em si, um ato ilícito grave.

Em suma, A liberdade de expressão e de imprensa é a base da democracia, mas ela não é absoluta: o exercício deve ser responsável, assegurando ao ofendido o direito de resposta e a integral indenização por danos, afinal não podemos tolerar que a condenação proferida num julgamento público e seletivo seja executado por meio do "ciber-apedrejamento".

 

Hélio Ramos é Advogado e Professor Universitário de Direito Constitucional/Penal/Eleitoral, desde 2006.



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