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O Gambito da Rainha

  • Artigo por Gonçalo Antunes de Barros Neto
  • 17/05/2023 07:05:07
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            O Gambito da Rainha é desses filmes que prende a atenção do telespectador. Foi lançado em 2020 e dirigido por Scott Frank.  É baseado no romance homônimo da genialidade de Walter Tevis e conta a história de Beth Harmon (Anya Taylor), jovem prodígio do xadrez que luta contra seus “demônios” internos enquanto tenta conquistar o mundo do xadrez competitivo, buscando alcançar a excelência nesse jogo complexo e estratégico.

            A trama se passa na década de 1960. Após perder sua mãe em um acidente de carro, quando era apenas uma criança, Harmon é enviada para um orfanato onde descobre sua paixão pelo xadrez, passando a jogar com o zelador no porão da casa, o que, posteriormente, lhe foi defeso pela diretora da instituição. De início já revela ter um talento especial no tabuleiro.

            Esse talento precoce acaba acompanhado de um vício em tranquilizantes, que, na época, era normal o uso em orfanatos para “acalmar” as crianças. À medida que o enredo avança, com ele a luta de Beth para superar seu vício, enfrentando desafios e preconceitos no mundo do xadrez, até então dominado por homens.

            O filme também explora temas mais profundos, como solidão, dependência química e empoderamento feminino. Beth parece ter uma personalidade complexa e multifacetada, com pequenas inseguranças, apesar de sua determinação em seguir adiante como jogadora de xadrez. O jogo para a menina dá uma sensação de autorrealização e pertencimento, tornando-a excepcional na perseverança e vontade adquiridas pelas cicatrizes deixadas pela condição de órfã de mãe aos nove anos, e de pai desde o nascimento.

            Também, o público é levado pelo filme a refletir sobre questões filosóficas profundas, especialmente na busca pelo significado e propósito da existência. Uma delas é a dualidade entre determinismo e livre arbítrio. Afinal, de onde vem a forte habilidade de Elizabeth Harmon no xadrez, considerando ter sido criada em um ambiente de dificuldades em sua infância? Isso levanta a questão de até que ponto o destino ou circunstâncias externas influenciam no sucesso das pessoas e até que ponto as escolhas de cada qual desempenham um papel relevante nas futuras realizações.

            Filósofos como Kant e Sartre exploraram essa dualidade e argumentaram que, embora sujeito a limitações e influências externas, o homem é um ser autônomo, capaz de tomar decisões e moldar a própria vida. Será?

            O Gambito da Rainha também levanta questões sobre identidade e autenticidade. Elizabeth Harmon, apesar de talentosa, ao mesmo tempo sofre com seus traumas e vícios. Percebe que ela quer encontrar seu lugar no mundo e, para isso, enfrenta a lógica de se conformar com as expectativas sociais. Essa batalha interna entre ser (ser em si) e se encaixar nas convenções sociais é um tema recorrente na filosofia existencialista. Para Sartre, por exemplo, o homem está condenado à liberdade, o que implica ser responsável por criar a própria identidade e dar significado a sua vida.

            Ainda, acima dessas questões, que também inquietam, o filme coloca em evidência a natureza da competição e o significado do sucesso. O mundo do xadrez retratado na série é altamente competitivo e Elizabeth Harmon enfrenta grandes adversários. Há espaço para se questionar se a vitória é a única indicadora de sucesso ou se existem outros parâmetros a considerar, especialmente o final, em que a nova campeã mundial de xadrez abdica da política oficial da “guerra fria” (EUA x URSS), que a aguardava no estilo de “vencedora dos campeões soviéticos na própria Moscou”, para jogar uma partida ao ar livre com pessoas simples, que a aplaudiam, independentemente de qualquer nacionalidade ou política oficial.

            Enfim, O Gambito da Rainha impõe considerar uma vida sem pertencimento, apesar do sentido da expressão em Gadamer e Heidegger (pertença do homem ao ser, que não o criou e nem o constituiu, mas habita nele).

            E muito provavelmente, hoje, sem pertencimento é algo como sair e ir saindo, o quanto puder, de grupos de whatts, não é mesmo? 

            É por aí...

 

Gonçalo Antunes de Barros Neto (Saíto) é magistrado, graduado em Filosofia, especialista pela Universidade de Lisboa, MBA pela FGV, mestre em Sociologia pela UFMT e escreve aos domingos em A Gazeta.



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