Não devemos dar, novamente, lições ao inferno.
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, no livro Modernidade e Holocausto, nos demonstra que o holocausto nazista não foi efeito de uma barbárie pré-moderna, mas sim da própria modernidade.
Somos acostumados a achar que o estranho são os outros. No caso relatado por Bauman, que tamanha desumanidade não poderia ter sido cometida pela própria geração que teve por dever digerir seus próprios excessos.
Reconhecida a barbárie nazista, um sistema global de garantias dos direitos humanos fora criado, pautado, por entre outros princípios, pela vedação ao retrocesso, ou seja, reconhecido um direito fundamental não seria permitido o seu retrocesso, apenas o avanço na sua proteção.
A humanidade em 2020 se deparou com a oportunidade de demonstrar uma resposta sinergética dos Estados, dos Organismos Supranacionais e da própria sociedade ao grave problema da pandemia do COVID-19, resposta que deveria ser prismada nos direitos à vida, à saúde e à dignidade da pessoa humana.
O que vimos e vemos, porém, são algumas nações mergulhadas em fake news, com panaceias rasputinianas à pandemia, o pronunciamento com pouca ressonância dos Organismos Supranacionais pela homogenização dos recursos no combate ao COVID-19 e a sociedade no seu instinto de autodefesa.
Nesse caldeirão perdidas estão as nações periféricas. Enquanto as nações centrais iniciam rebaixamento do rigor das medidas sanitárias, incentivando a retomada das atividades como turismo, países como Tanzania, Burkina Faso e Madagascar possuem índices de vacinação que não chegam a 1% da população, segundo o portal de estatística Our Word in Date.
A pandemia veio mostrar o quão frágil ainda estamos na defesa dos direitos à vida, à saúde e à dignidade da pessoa humana em escala global e principalmente: como nas grandes encruzilhadas, como na pandemia do COVID-19, continuamos escolhendo os caminhos tortuosos como o do início do século passado, escanteado o princípio da vedação ao retrocesso das conquistas em direitos humanos.
Algumas nações africanas possuem sua linha de frente, idosos e portadores de comorbidade sem receber sequer a primeira dose de imunizante e isso deveria trazer duras reflexões pela comunidade internacional, porém o que se vê é uma corrida pela terceira dose nas nações centrais.
A tentativa da Organização Mundial da Saúde (OMS), por meio do consórcio Covax Facility, em levar a vacina para os países de baixa renda, foi praticamente barrada pela reserva de doses feita pelos países ricos, bem maior que o necessário para seus habitantes.
Se não bastasse a carência de insumo, as nações mais pobres possuem outras dificuldades: (...) e o problema da vacinação é muito mais complexo. Um programa de imunização tem toda uma logística por trás. E essa logística tem gastos. Por isso, muitos desses 55 países tiveram que devolver vacinas porque não conseguiram aplicá-las por falta de dinheiro para sustentar as campanhas. (...) É por isso que a vacinação na África é muito lenta, não só por falta de imunizantes, mas por toda a cadeia de infraestrutura e logística.
Concordamos, integralmente, com o discurso do Secretário-Geral da ONU, António Guterres, na abertura dos debates da 76ª sessão da Assembleia Geral, em 21 de setembro de 2021: "Por um lado, vemos as vacinas desenvolvidas em tempo recorde - uma vitória da ciência e da engenhosidade humana. Por outro lado, vemos esse triunfo desfeito pela tragédia da falta de vontade política, do egoísmo e da desconfiança. Um superávit em alguns países. Prateleiras vazias em outros. A maioria do mundo mais rico foi vacinada. Mais de 90 por cento dos africanos ainda esperam pela primeira dose. Esta é uma acusação moral ao estado de nosso mundo. É uma obscenidade. Passamos no teste de ciências. Mas estamos tirando a pior nota em Ética".
A pandemia do COVID-19 estampa a nossa barbárie, a barbárie da sociedade pós-moderna, que, mesmo após a criação de um sistema de garantias de direitos à vida, à saúde e à dignidade da pessoa humana, preferiu guiar-se marginalmente ao princípio da vedação ao retrocesso.
O preço pode ser altíssimo, novas cepas podem surgir pela falta de gerenciamento global da pandemia, a falta de vacinas nas nações periféricas transcende as questões humanitárias locais, podendo a circulação e recirculação do vírus gerar novas variantes cujas vacinas poderão não mais trazer eficácia.
Olhando a obra de Zygmunt Bauman, fazendo um paralelo à resposta da sociedade pós-moderna à pandemia do COVID-19 e a resposta da sociedade moderna no pós-guerra, podemos afirmar: fácil olharmos para o passado e enxergarmos o quão levianas foram as justificavas das gerações passadas nas suas ações extremas. O difícil será, no futuro bem próximo, para a nossa geração, digerir que somos nós os causadores dos excessos na Pandemia do COVID-19, por não respeitarmos a vedação ao retrocesso dos direitos humanos.
Estamos prontos para digerir nossos próprios excessos?
Paulo Henrique Carvalho Prado é Promotor de Justiça no Estado de Alagoas / Graduado em Direito pela Universidade Mackenzie / Especialista em Processo Civil pela Universidade de São Paulo / Associado do MPD - Movimento do Ministério Público Democrático.
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