Havia certo tempo, e o homem continuava ali parado, com o olhar fixo em um ponto da casa. Parecia ter os pés presos ao solo. Tanto que não os movia, nem demonstrava interesse em sair-se dali. Não escondia o seu estar fissurado. Inflexível, sem ter o olhar quebrado, tampouco oblíquo. Fissurou-se, mais tanto, a exemplo de um enamorado, ainda que a pessoa desejada estivesse longe do alcance de suas mãos. Mesmo assim: olhou, reolhou e voltou a olhar. Dúvida alguma havia. A rachadura era mais que visível. Impossível não vê-la, muito menos escondê-la. Pois era vista de longe, e toda vez que a via, sentia entristecido. Uma tristeza cortante, causticante, corroía por dentro, a ponto de afetá-lo completamente.
Um ar quente lhe escorria a espinha, fazia-o tremer a pele, e também as pálpebras. Sensação dolorida. Igualmente decepcionante. Decepção manifesta que lhe rachava a cabeça molhada de suor. Suor de angústia, quase de desespero ao ver a parede, antes aparentemente forte e sólida, enfraquecer-se em razão da rachadura que parecia se abrir mais e mais. Rachadura que foi causada. Não surgiu do nada, assim da noite para o dia, sem que alguém pudesse tê-la provocado.
Provocou-a despido de qualquer arrependimento. Tanto que chegava a bater no próprio peito e gritar pelo que fizera, como se estivesse em êxtase pelo conseguido. Num gozo permanente. Abobado, a todo instante, gabava-se da proeza. Proeza que nada tem de elogiável. Nem se tem como exaltá-la. Pois é forte o redemoinho das desavenças. Tamanhas que impedem o esconder do não louvável, ainda que as ditas proezas provoquem risos, sem que haja talento para tal. Vive-se, afinal, sob o signo da mediocridade, em meio ao cenário do faz de conta, às voltas com o vendaval da pandemia que se espalha, amedronta e mata.
Dor, cuja ferida não se cicatriza. Ainda que se tenha o tratamento precoce, mas, nem mesmo este, surte o efeito desejado, embora propagado. Propaga-o sem comprovação e sem o aval da ANVISA, ainda que quisesse alterar sua bula, via decreto presidencial. Situação vexatória. Enganadora. Gerada pelo ventre da invencionice, que se estabelece sob as nuvens confusas das inverdades. Inverdades passadas por verdades. Verdades construídas com as histórias da Carochinha, ou das anedotas de Pedro Malasarte, sem sê-lo, de fato. Pois, sobre o falso, nada há em Câmara Cascudo. Este diz que o verdadeiro “é figura tradicional nos contos populares da Península Ibérica, como exemplo de burlão invencível, astucioso, cínico, inesgotável de expedientes e de enganos, sem escrúpulos e sem remorsos”.
Embora haja em meio ao que se ouve hoje, parte do burlão e de enganação, e que mexe com o imaginário de um grupo, ainda que seus seguidores prefiram a anedota à reflexão, “e acho que faz muito bem”, no dizer de Machado de Assis em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Cai o pano da ingenuidade. Realça a cortina da insensatez. Vento pavoroso, “sem que precise morrer na própria noite de estreia”, como escreveu Nelson Rodrigues, em “A menina sem estrela: memória”. Idiotas aumentam, acrescenta o próprio Nelson Rodrigues, em outro texto. Talvez seja melhor ser idiota que incessíveis. Os insensíveis continuam causadores da rachadura na parede. Indelével. Desvaloriza o que havia.
Empobrecia tudo. Mas... Sempre há um “mas”, a despeito de quem se fantasia com as cores da casa, tem ela estampado na camiseta, repete o mesmo jargão de gostar-se em demasia dela. Porém, suas ações surtem bem outro efeito, a ponto de rachar o que jamais deveria ser rachado. Pois, ao ser rachado, tende a se separar, rasgar ao meio, separação que desagrega, desune e faz o todo se perder. Perdido, o todo que não é mais igual ao de antes, sente suas faltas. Faltas que o transformam em um corpo alquebrado. E, ao alquebrar-se, torna-se paupérrimo. Infeliz país. É isto.
Lourembergue Alves é professor universitário e analista político.
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