• Cuiabá, 21 de Novembro - 00:00:00

De abençoado

Assim que deixei o hospital passei por um curto período de extrema cautela. Temia espirrar! Num dos desvios das obras da Copa de 2014 cruzei o Jardim Petrópolis indo para o Boa Esperança e o carro saltou sobre um quebra-molas – o susto foi grande. Com quatro stents farmacológicos recém-implantados a insegurança era minha companheira constante, imperceptível para os demais, mas angustiante pra mim.

Dia após dia minha concentração sobre as sequelas do incidente de percurso causado pelo infarto que sofri se volatilizou. Em pouco tempo tudo mudou. Em procedimentos perfeitos pela equipe do cardiologista Carlos Augusto Carretoni Vaz implantei dois stents em agosto e outro tanto em setembro de 2013. Em 12 de outubro – Dia das Crianças – estava em Alto Boa Vista acompanhado pelo fotógrafo Felipe Barros, para uma reportagem com as pequeninas vítimas da mão odiosa do Estado Brasileiro na gleba Suiá-Missú, que na região é conhecida como antiga fazenda do Papa e que pela força de uma aberrante desintrusão virou terra indígena Marãiwatsédé.

A mão de Deus permanentemente está comigo. Na noite do infarto, sofrendo uma dor quase insuportável no peito Ela me afagou. Deu-me força na agonia da espera das intervenções no hospital. Iluminou os médicos que cuidaram de mim. Aplainou o caminho à minha rápida recuperação. Continua sempre aquecendo minha alma com o carinho dos meus netos Ana Júlia, Maria Carolina e Eduardo; meus filhos Jeisa, Agenor e Luiz Eduardo; minha mulher Wanderly; minha família e amigos. Estamos sempre entrelaçados - criatura e Criador. Assim será para sempre, até que Ela aponte o outro lado da vida e a luz do meu olhar não mais cruze na face da Terra com os olhos dos filhos de Deus.

Longe da dramatização ou da vitimização, mas quem sobrevive ao infarto e enche o peito de implantes passa a ver o mundo sobre outro prisma. Sem negar ou tentar me afastar dos meus defeitos, e mantendo sempre a mea culpa acho que aprendi a compreender melhor o semelhante, perdoar o irmão, buscar a paz e a refrear sentimentos que brotam da fragilidade humana.

O incidente de percurso ao invés de tirar minha vida deu-me um aniversário a mais. Às vésperas dos 70 não se fala mais em dia, mas em mês de nascimento. Agora, ao setembro somo o agosto. Tenho dois meses para comemorar a data em que minha mãe Alzira e meu pai Agenor – ambos de saudosa memória – me deram o mundo para crescer, sofrer, sorrir, chorar, amar, ser feliz e infeliz, viver e morrer.

Quando de meu primeiro choro e banho - com águas do rio Doce, em Minas - nada tinha de bem material, mas havia o mundo pela frente. Quase 68 anos depois o desprovimento material não mudou, mas a linha do horizonte está a um passo. Esse é o ciclo da vida, inclusive pra quem tem duplo mês de nascimento. Abençoado infarto! 

 

Eduardo Gomes de Andrade é jornalista

eduardogomes.ega@gmail.com



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