Não me surpreendo com mais nada. O Brasil é o próprio país das maravilhas, pensado por Lewis Caroll. Vivemos numa realidade paralela, onde o insólito torna-se banal. Nenhuma novidade na investigação (tardia) da Polícia Federal com relação à produção brasileira de carnes. Produtos “esquentados” são muito comuns no país. Isso significa que são produzidas em áreas restritas à exportação, mas levam um selo do Serviço de Inspeção Federal de outro local, habilitado para a venda internacional.
Essa jogada é manjada, já foi objeto de flagrante e nada aconteceu. Certa vez, participei de um flagrante num entroncamento mato-grossense, cujo produto do caminhão era proveniente do Pará, mas levava o selo de Araputanga, por exemplo. O contêiner é fechado e não passa pela fiscalização nas barreiras, indo diretamente aos portos. Portanto, os fiscais ficam com receio de cumprir o próprio trabalho.
Outro golpe é o uso de dinheiro público do BNDES para financiar a compra de plantas americanas, a abertura de capital de gigantes do setor e a consequente cartelização do mercado brasileiro. O caso do frigorífico nos Estados Unidos e na Argentina é bem conhecido. Ambos adquiridos com recursos brasileiros, através de lobby político. Da mesma forma como a compra da refinaria de Pasadena, a jogada de alavancagem de empresas particulares também é antiga, conhecida, e até hoje ninguém fez nada.
A novidade, como sempre inverossímil, é a própria operação policial. Ela é tão fantástica, tão inesperada que está sendo combatida pelo setor produtivo e, pasmem, pelo próprio governo federal. A corrupção instalada há décadas no MAPA possibilitou todas as malandragens descritas anteriormente, mas o flagra policial é que compromete a nossa imagem? Pois bem. Essa parece ser a ótica míope do governo e do setor.
Enquanto não era a melhor amiga da petista Dilma Roussef, a então deputada Kátia Abreu deu o seguinte depoimento em sessão da Câmara dos Deputados em 30 de novembro de 2005: “Quero lembrar que, no meu Estado, o Tocantins, são mais de 5 anos de luta contra esse cartel. Há uma máfia nacional, com 5 famílias, cada uma com um capo, mas há também as máfias estaduais, que se organizam em famílias, com seus chefes, para derrubar o preço da carne. Esperam a família maior marcar o preço e depois combinam na base, entre os familiares, para derrubar os preços nos Estados”.
Já o deputado Waldemir Moka, na mesma sessão, manifestou-se da seguinte forma: “Quero deixar isto registrado nesta Comissão: este é um segmento que precisa ser ouvido e que, apesar de dois anos de achatamento de preço na arroba do boi, não vimos nenhuma diminuição de preço da carne nos supermercados, nas casas de carne ou nos açougues. Para o consumidor não há nenhum benefício. E aí fico preocupado. O BNDES tem que também ter essa preocupação. Vamos financiar 80 milhões de dólares, e aí o cidadão vai colocar uma planta lá na Argentina — para quê? Para esquentar o setor de carne na Argentina e exportar mais caro? Será que é isso que está em jogo? Eu não consigo entender isso. Percebe-se, nitidamente, que o BNDES tem noção de que a planta já foi financiada, e há um convênio com a extinta SUDAM. Não pode ser. Como é que o BNDES faz esse contrato? Como é isso? É permitido? Não! Mas não é do Friboi. Há um contrato aí — o cara disse claramente —, um contrato de gaveta: um pagamento em paralelo”.
Portanto, era bem conhecida a fragilidade do setor. Ao contrário da transparência e da formação de imagem positiva, pretendem menosprezar a amplitude das investigações, afirmando que se trata de uma questão pontual. Não é pontual, entretanto. É, ao contrário, institucional. Os quadros do SIF precisam de altíssimo controle, a origem da carne deve ser fortemente fiscalizada, o dinheiro público que bancou o gigante arroto de grandeza deve ser restituído.
Por que querem colocar panos quentes, afinal? É simples a resposta. Duas são as explicações. Primeiro, que a União virou “sócia” dos grandes conglomerados exportadores, devendo preservar o próprio investimento. A queda das ações de uma única empresa pode fazer com que uma fortuna seja perdida, sem nenhuma garantia verossímil em contrapartida. A política das “campeãs nacionais”, implementada pelo petismo ultraliberal fez com que bilhões fossem empatados em empresas particulares, regulando o mercado em favor de meia dúzia de empresários que dominaram a cadeia produtiva da pior forma possível. Segundo, que os financiadores de campanhas eleitorais são esses mesmos campões nacionais, sendo que essa já seria explicação suficiente para o “cuidado” político com o setor. Portanto, não venham falar ao consumidor para que não se preocupe.
Já se sabe que os fins não justificam os meios. O crescimento antiético do cartel, fomentado com dinheiro público enfraqueceu a nossa posição internacional. O cartel treme com uma investigação mais do que treme um animal com vaca louca. Até o vegetariano deve estar de cabelos em pé, porque contribuiu com dinheiro para essa crise de imagem que é grave. Quem paga a conta, como sempre, é o contribuinte e o pecuarista, primeiro elo dessa cadeia produtiva cartelizada e desequilibrada. Somos nós, pagantes de impostos, que devemos ser salvos. São os pecuaristas que devem ser protegidos. Temos que aproveitar a oportunidade para exigir que abram a caixa-preta do BNDES. O cartel mercenário que pressiona o produtor já recebeu dinheiro público demais para reclamar de alguma coisa.
Eduardo Mahon é advogado.
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