Mirian Teresa Pascon
No último dia útil de 2023, o país foi surpreendido pela edição da Medida Provisória nº 1.202, que, a um só tempo, promoveu a reoneração gradativa da folha de salários, extinguiu os benefícios fiscais do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (PERSE) e impôs contundentes limitações à compensação de créditos judiciais.
Editada logo após a derrubada do veto presidencial à prorrogação da desoneração da folha de salários até dezembro de 2027, a MP 1.202/23 buscou conter o impacto econômico dessa derrota política. Aproveitou-se, também, para mitigar os efeitos da chamada "tese do século", que assegurou aos contribuintes o direito à exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS.
O objetivo foi expressamente declarado na Exposição de Motivos da MP 1.202, que reconheceu o "forte incremento na compensação a partir do ano de 2019, especialmente em razão de créditos oriundos de ações judiciais quanto ao Tema 69 de repercussão geral", bem como "a necessidade de resguardar a arrecadação federal ante a possibilidade de utilização de créditos bilionários para a compensação de tributos".
Assim, promoveu-se alteração no artigo 74 da Lei nº 9.430/96, além da inclusão do artigo 74-A, que instituiu um limite mensal à compensação de créditos judiciais, fracionando sua utilização no tempo.
O novo artigo 74-A estabeleceu que a compensação de créditos decorrentes de decisões judiciais deve observar limites mensais a serem definidos pelo Ministério da Fazenda, aplicando-se a créditos cujo valor total seja superior a R$ 10 milhões.
Em 5 de janeiro de 2024, por meio de edição extra do Diário Oficial da União, o Ministério da Fazenda publicou a Portaria Normativa MF nº 14/2024, regulamentando o artigo 74-A. A norma escalonou valores e prazos mínimos de compensação, que variam de 12 a 60 meses, conforme o montante do crédito atualizado na data da primeira compensação.
Em síntese, a conjugação da MP 1.202/23 com a Portaria MF nº 14/24 resultou em restrições significativas para utilização de créditos judiciais superiores a R$ 10 milhões, impondo faixas mensais de aproveitamento, que agora se encontram consolidadas na Lei nº 14.873/23, fruto da conversão da medida provisória.
Diante da omissão legal quanto ao alcance das novas regras, inicialmente, os contribuintes temeram sua aplicação retroativa para compensações já em curso, buscando amparo judicial preventivo. A Receita Federal, contudo, confirmou, em seu "Perguntas e Respostas", que a restrição alcançava todas as compensações, inclusive as já iniciadas.
A matéria segue judicializada, ainda sem jurisprudência consolidada. Há, no entanto, decisões favoráveis aos contribuintes, em diferentes Tribunais Regionais Federais.
A controvérsia jurídica se desdobra em dois pontos centrais: a incompatibilidade geral das limitações com o sistema tributário vigente e, subsidiariamente, sua inaplicabilidade retroativa a créditos oriundos de ações ajuizadas e já transitadas em julgado antes da vigência do art. 74-A.
Quanto ao mérito geral, a tendência é de rejeição das teses contribuintes. O Supremo Tribunal Federal (STF) fixou entendimento de que a compensação tributária tem natureza infraconstitucional, cabendo ao legislador ordinário discipliná-la. Já no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o entendimento é sedimentado no sentido de que o art. 170 do Código Tributário Nacional (CTN) permite ao legislador impor condições ao exercício da compensação. Além disso, nos Temas 265 (REsp 1.137.738/SP) e 345 (REsp 1.164.452/MG), a Corte fixou entendimento de que a lei aplicável à compensação é a vigente na data do encontro de contas.
Todavia, o STJ excepcionou essa regra para os créditos oriundos de decisões judiciais, aplicando, nesses casos, a lei vigente ao tempo do ajuizamento da ação.
Esse distinguishing fundamenta a tese subsidiária dos contribuintes: a inaplicabilidade do artigo 74-A a créditos constituídos em demandas ajuizadas antes de 2024, ainda que sem trânsito em julgado à época, ou mesmo nos casos em que, embora já transitados, não tenha havido a primeira compensação. Nesse sentido, a legislação aplicável poderia retroagir até a Lei nº 8.383/91, que introduziu a compensação federal de créditos vincendos.
A defesa dessa posição repousa, especificamente, no sobreprincípio da segurança jurídica, que é refletido nos princípios da proteção à coisa julgada e da irretroatividade da lei. Soma-se a isso o princípio da justiça tributária, elevado a nível constitucional pela Emenda Constitucional nº 132/23, que instituiu a recente reforma tributária.
Permitir a retroatividade das restrições introduzidas pela MP 1.202/23 implicaria violação à confiança legítima do contribuinte, que estruturou sua conduta com base no direito à compensação integral, bem como afronta à coisa julgada material, porquanto ao tempo em que ajuizada a ação de origem não havia a condicionante, não podendo o direito constituído sofrer relativizações por ulterior alteração normativa.
Também sob o prisma da recente reforma, tem-se o princípio da justiça tributária, que deve ser compreendido não somente voltado ao tratamento isonômico entre contribuintes, mas também como forma de equiparação de direitos e deveres do Estado e de seus jurisdicionados, não mais se concebendo que o Estado siga atuando como agente desestabilizador do equilíbrio de relações jurídicas.
Importa lembrar que, em precedente semelhante, o STJ afastou a aplicação retroativa do próprio artigo 170-A do CTN — instituído pela LC 104/01 para impedir compensação antes do trânsito em julgado — às ações ajuizadas anteriormente, sinalizando possível orientação futura favorável aos contribuintes quanto ao artigo 74-A.
Enquanto isso, os contribuintes seguem litigando para o imediato afastamento das novas limitações, cientes de que uma demora na fixação de jurisprudência poderá esvaziar seus pleitos, já que os prazos máximos de compensação podem chegar a 60 meses.
*Mirian Teresa Pascon é advogada especialista em Direito Tributário e Coordenadora Jurídica da Elebece Consultoria Tributária.
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