• Cuiabá, 10 de Setembro - 2025 00:00:00

Desembargador Orlando Perri manda suspender Decreto de Mendes em Cuiabá


Da Redação

Desembargador do Tribunal de Justiça, Orlando Perri, concedeu neste domingo (29) "parcialmente", em caráter liminar, ação interposta pela prefeitura de Cuiabá contra Decreto do Governo do Estado - na esteira do coronavírus - assegurando assim a suspensão de medidas pontuadas pelo Executivo de Mato Grosso, em relação principalmente à abertura de estabelecimentos na Capital. 

"Cuida-se de mandado de segurança, com pedido de liminar, impetrado pelo MUNICÍPIO DE CUIABÁ contra ato do GOVERNADOR DO ESTADO DE MATO GROSSO, Exmo. Sr. MAURO MENDES FERREIRA, consubstanciado na edição do Decreto nº 425/2020, que “consolida as medidas temporárias restritivas às atividades privadas para prevenção dos riscos de disseminação do Coronavírus (COVID-19) e dá outras providências”, publicado no Diário Oficial nº 27.719, de 26/03/2020", considera o pedido da gestão junto ao Tribunal de Justiça.

Em trecho, a prefeitura argumenta que "assevera que o sobredito Decreto Estadual, em algumas situações, diverge do Decreto Municipal nº 7.849, de 20/03/2020 (alterado pelo Decreto Municipal nº 7.850, de 23/03/2020), no que tange às medidas restritivas inerentes às atividades econômicas privadas em âmbito municipal, como, por exemplo, no art. 4º, LX, que possibilitou a abertura de shopping centers, lojas de departamento, galerias e congêneres. Verbera que o Decreto atacado vincula, em seu art. 13, o cumprimento, pelos municípios, das medidas nele contidas, dispondo que estes somente podem adotar medidas não farmacológicas mais restritivas mediante fundamentação técnico-científica que justifique a providência no âmbito local”. 

Confira a Decisão na íntegra:

ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA Des. Orlando de Almeida Perri 13543 – JRT Página 1 de 21 MANDADO DE SEGURANÇA CÍVEL N. 1007834-59.2020.811.0000 – COMARCA DE CUIABÁ IMPETRANTE: MUNICÍPIO DE CUIABÁ IMPETRADO: GOVERNADOR DO ESTADO DE MATO GROSSO VISTOS, Recebi hoje.

Cuida-se de mandado de segurança, com pedido de liminar, impetrado pelo MUNICÍPIO DE CUIABÁ contra ato do GOVERNADOR DO ESTADO DE MATO GROSSO, Exmo. Sr. MAURO MENDES FERREIRA, consubstanciado na edição do Decreto nº 425/2020, que “consolida as medidas temporárias restritivas às atividades privadas para prevenção dos riscos de disseminação do Coronavírus (COVID-19) e dá outras providências”, publicado no Diário Oficial nº 27.719, de 26/03/2020.

Assevera que o sobredito Decreto Estadual, em algumas situações, diverge do Decreto Municipal nº 7.849, de 20/03/2020 (alterado pelo Decreto Municipal nº 7.850, de 23/03/2020), no que tange às medidas restritivas inerentes às atividades econômicas privadas em âmbito municipal, como, por exemplo, no art. 4º, LX, que possibilitou a abertura de shopping centers, lojas de departamento, galerias e congêneres. Verbera que o Decreto atacado vincula, em seu art. 13, o cumprimento, pelos municípios, das medidas nele contidas, dispondo que estes “somente podem adotar medidas não farmacológicas mais restritivas mediante fundamentação técnico-científica que justifique a providência no âmbito local”. 

Aduz que o apoio operacional da Polícia Militar foi limitado, com exclusividade, para cumprimento do referido Decreto [art. 8º, § 2º], obstando os entes municipais de solicitar apoio à PM/MT para fins de cumprimento das medidas mais restritivas, editadas no âmbito dos municípios. Diz que a competência para dispor sobre o fundamento de atividades comerciais é do município, escorando-se na Súmula Vinculante nº 38, por se tratar de assunto de interesse local, e que o transporte coletivo municipal e transporte individual remunerado de passageiros, por meio de táxi ou aplicativo, também são temas dos quais o município possui direito líquido e certo de dispor e regulamentar, conforme art. 30, V, da CF/88 e arts. 11-A e 12, da Lei nº 12.587/2012, o mesmo ocorrendo com as disposições do aludido Decreto sobre bens e serviços públicos municipais.

Sustenta que as consequências do indigitado Decreto na saúde pública podem ser devastadoras, pois a liberação de funcionamento de shopping centers e congêneres contraria as recomendações emanadas do Ministério da Saúde e das autoridades sanitárias mundiais, que recomendam o isolamento social como forma de combate à disseminação do Coronavírus. Informa a existência de 167 [cento e sessenta e sete] leitos, em geral [incluídos leitos de UTI, enfermaria, cirúrgica, clínico, pediátrico e outras especialidades] no Pronto Socorro municipal, dos quais apenas 94 [noventa e quatro] estão vagos, e que todas as unidades de saúde da capital, englobando a rede pública e a privada, totalizam 997 [novecentos e noventa e sete] leitos, o que demonstra a incapacidade operacional delas em caso de aumento excessivo de casos de COVID-19 no Página 3 de 21 município, que pode ser agravado com a vinda de pacientes de outras cidades do interior do Estado.

Pede a concessão liminar da segurança, para que seja suspensa a eficácia do Decreto Estadual nº 425/2020, até o julgamento do mérito. Sucessivamente, almeja a suspensão imediata das disposições contidas no art. 3º, I e II; 4º, XXXIX, LX e LXII; § 2º do art. 8º, e art. 13 do aludido Decreto, até o julgamento do mérito. É o relato do necessário. DECIDO. Prefacialmente, verifico preenchido o requisito contido no artigo 1º, “a”, da Resolução n. 71/2009, do Conselho Nacional de Justiça, que disciplina o plantão judiciário, verbis: Art. 1º. O Plantão Judiciário, em primeiro e segundo graus de jurisdição, conforme a previsão regimental dos respectivos tribunais ou juízos destina-se exclusivamente ao exame das seguintes matérias: a) pedidos de habeas-corpus e mandados de segurança em que figurar como coator autoridade submetida à competência jurisdicional do magistrado plantonista; [...]. Dito isso, anoto que, em 07/02/2020, entrou em vigor a Lei n. 13.979/2020, que “dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Coronavírus responsável pelo surto de 2019”. Em seu artigo 3º, o sobredito diploma legal estabelece o seguinte: Página 4 de 21 Art. 3º. Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: (Redação dada pela Medida Provisória nº 926, de 2020) I - isolamento; II - quarentena; [...] A definição de quarentena, para os fins desta lei, está contida no inciso II do art. 2º, verbis: Art. 2º. Para fins do disposto nesta Lei, considera-se: [...] II - quarentena: restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do Coronavírus. Regulamentando esta lei, o Presidente da República editou o Decreto nº 10.282/2020, alterado pelo Decreto nº 10.292/2020, que, em seu art. 3º, trouxe o rol de serviços públicos e de atividades essenciais a que se referem o art. 1º, § 1º, da Lei n. 13.979/2020, que “objetivam a proteção da coletividade”: Art. 3º As medidas previstas na Lei nº 13.979, de 2020, deverão resguardar o exercício e o funcionamento dos serviços públicos e atividades essenciais a que se refere o § 1º. Página 5 de 21 § 1º São serviços públicos e atividades essenciais aqueles indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população, tais como: I - assistência à saúde, incluídos os serviços médicos e hospitalares; II - assistência social e atendimento à população em estado de vulnerabilidade; III - atividades de segurança pública e privada, incluídas a vigilância, a guarda e a custódia de presos; IV - atividades de defesa nacional e de defesa civil; V - transporte intermunicipal, interestadual e internacional de passageiros e o transporte de passageiros por táxi ou aplicativo; VI - telecomunicações e internet; VII - serviço de call center; VIII - captação, tratamento e distribuição de água; IX - captação e tratamento de esgoto e lixo; X - geração, transmissão e distribuição de energia elétrica e de gás; X - geração, transmissão e distribuição de energia elétrica, incluído o fornecimento de suprimentos para o funcionamento e a manutenção das centrais geradoras e dos sistemas de transmissão e distribuição de energia, além de produção, transporte e distribuição de gás natural; (Redação dada pelo Decreto nº 10.292, de 2020) XI - iluminação pública; Página 6 de 21 XII - produção, distribuição, comercialização e entrega, realizadas presencialmente ou por meio do comércio eletrônico, de produtos de saúde, higiene, alimentos e bebidas; XIII - serviços funerários; XIV - guarda, uso e controle de substâncias radioativas, de equipamentos e de materiais nucleares; XV - vigilância e certificações sanitárias e fitossanitárias; XVI - prevenção, controle e erradicação de pragas dos vegetais e de doença dos animais; XVII - inspeção de alimentos, produtos e derivados de origem animal e vegetal; XVIII - vigilância agropecuária internacional; XIX - controle de tráfego aéreo, aquático ou terrestre; XX - compensação bancária, redes de cartões de crédito e débito, caixas bancários eletrônicos e outros serviços não presenciais de instituições financeiras; XX - serviços de pagamento, de crédito e de saque e aporte prestados pelas instituições supervisionadas pelo Banco Central do Brasil; (Redação dada pelo Decreto nº 10.292, de 2020) XXI - serviços postais; XXII - transporte e entrega de cargas em geral; XXIII - serviço relacionados à tecnologia da informação e de processamento de dados (data center) para suporte de outras atividades previstas neste Decreto; XXIV - fiscalização tributária e aduaneira; XXV - transporte de numerário; Página 7 de 21 XXV - produção e distribuição de numerário à população e manutenção da infraestrutura tecnológica do Sistema Financeiro Nacional e do Sistema de Pagamentos Brasileiro; (Redação dada pelo Decreto nº 10.292, de 2020) XXVI - fiscalização ambiental; XXVII - produção, distribuição e comercialização de combustíveis e derivados; XXVII - produção de petróleo e produção, distribuição e comercialização de combustíveis, gás liquefeito de petróleo e demais derivados de petróleo; (Redação dada pelo Decreto nº 10.292, de 2020) XXVIII - monitoramento de construções e barragens que possam acarretar risco à segurança; XXIX - levantamento e análise de dados geológicos com vistas à garantia da segurança coletiva, notadamente por meio de alerta de riscos naturais e de cheias e inundações; XXX - mercado de capitais e seguros; XXXI - cuidados com animais em cativeiro; XXXII - atividade de assessoramento em resposta às demandas que continuem em andamento e às urgentes; XXXIII - atividades médico-periciais relacionadas com o regime geral de previdência social e assistência social; XXXIII - atividades médico-periciais relacionadas com a seguridade social, compreendidas no art. 194 da Constituição; (Redação dada pelo Decreto nº 10.292, de 2020) XXXIV - atividades médico-periciais relacionadas com a caracterização do impedimento físico, mental, intelectual ou sensorial da pessoa com deficiência, por meio da integração de Página 8 de 21 equipes multiprofissionais e interdisciplinares, para fins de reconhecimento de direitos previstos em lei, em especial na Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 - Estatuto da Pessoa com Deficiência; e XXXIV - atividades médico-periciais relacionadas com a caracterização do impedimento físico, mental, intelectual ou sensorial da pessoa com deficiência, por meio da integração de equipes multiprofissionais e interdisciplinares, para fins de reconhecimento de direitos previstos em lei, em especial na Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 - Estatuto da Pessoa com Deficiência; (Redação dada pelo Decreto nº 10.292, de 2020) XXXV - outras prestações médico-periciais da carreira de Perito Médico Federal indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. XXXV - outras prestações médico-periciais da carreira de Perito Médico Federal indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade; (Redação dada pelo Decreto nº 10.292, de 2020) XXXVI - fiscalização do trabalho; (Incluído pelo Decreto nº 10.292, de 2020) XXXVII - atividades de pesquisa, científicas, laboratoriais ou similares relacionadas com a pandemia de que trata este Decreto; (Incluído pelo Decreto nº 10.292, de 2020) XXXVIII - atividades de representação judicial e extrajudicial, assessoria e consultoria jurídicas exercidas pelas advocacias públicas, relacionadas à prestação regular e Página 9 de 21 tempestiva dos serviços públicos; (Incluído pelo Decreto nº 10.292, de 2020) XXXIX - atividades religiosas de qualquer natureza, obedecidas as determinações do Ministério da Saúde; e (Incluído pelo Decreto nº 10.292, de 2020) XL - unidades lotéricas. (Incluído pelo Decreto nº 10.292, de 2020) O Decreto atacado, por sua vez, em seus artigos 3º e 4º, permitiu o funcionamento de uma série de atividades, não contidas no rol de atividades essenciais enumeradas no Decreto Presidencial, e que haviam sido restringidas no Decreto Municipal nº 7.849, de 20/03/2020 (alterado pelo Decreto Municipal nº 7.850, de 23/03/2020). O nó górdio desta ação mandamental é o limite da competência de cada ente federativo para dispor sobre a matéria em debate.

O Supremo Tribunal Federal, em recentíssima decisão da lavra do Ministro MARCO AURÉLIO, em Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.341/DF, promovida pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT, deferiu “em parte, a medida acauteladora, para tornar explícita, no campo pedagógico e na dicção do Supremo, a competência concorrente” da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, “na forma do artigo 23, inciso II, da Lei Maior” [Decisão de 24/03/2020]. Na lição de JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA, “o art. 23 apresenta tema que são de competência material comum a todos os entes federativos, que devem cooperar entre si, para que se alcance os resultados pretendidos pela Constituição do melhor modo possível (federalismo cooperativo, cf. parágrafo único do art. 23). Assim, p.ex., ‘o Estado deve criar meios para prover serviços médico-hospitalares e Página 10 de 21 fornecimento de medicamentos, além da implementação de políticas públicas preventivas, mercê de os entes federativos garantirem recursos em seus orçamentos para implementação delas’ (STF, RE 607.381-AgRg, rel. Min. Luiz Fux, 1ª T., j. 31.05.2011)” [Constituição Federal Comentada, Ed. RT, 3ª edição, pág. 255 - destaquei]. No caso vertente, valendo-se da competência que se lhes é atribuída pelo artigo 23 da Carta Magna, os Decretos Estadual [425/2020] e Municipal [7.849/2020] divergem acerca da possibilidade de funcionamento de determinadas atividades comerciais e forma da prestação de serviços, sendo que as normas municipais se apresentam mais restritivas que as estaduais. Diante do impasse, deve ser analisada a preponderância de interesses, como se extrai da lição de GILMAR FERREIRA MENDES e PAULO GUSTAVO GONET BRANCO, verbis: “A Carta da República prevê, no parágrafo único do art. 23, a edição de leis complementares federais, para disciplinar a cooperação entre os entes tendo em vista a realização desses objetivos comuns. A óbvia finalidade é evitar choques e dispersão de recursos e esforços, coordenando-se as ações de pessoas políticas, com vistas à obtenção de resultados mais satisfatórios. Se a regra é a cooperação entre União, Estadosmembros, Distrito Federal e Municípios, pode também ocorrer conflito entre esses entes, no instante de desempenharem as atribuições comuns. Se o critério da colaboração não vingar, há de se cogitar o critério da preponderância de interesses [...]” [Curso de Direito Constitucional, Ed. Saraiva, 12ª edição, pág. 877]. Página 11 de 21 Partindo da premissa da preponderância de interesses, a Constituição da República, em seu art. 6º, estabelece, dentre outros, a saúde como direito social e garantia fundamental. Já no artigo 196, trata do direito à saúde e do dever do Estado de prever e prover os meios de alcançá-la, mantê-la ou recuperá-la: Art. 196 - A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Ao permitir as atividades e serviços descritos nos artigos 3º e 4º do Decreto nº 425/2020, a autoridade coatora faz expressa menção, em seus “considerandos”, à nota expedida pela Sociedade Brasileira de Infectologia – SBI, em 24/03/2020, “que alerta para a necessidade de manutenção das medidas de restrição recomendadas pelo Ministério da Saúde”. A referida nota consigna o seguinte: “[...]O Brasil está numa curva crescente de casos, com transmissão comunitária do vírus e o número de infectados está dobrando a cada três dias. Concordamos com o Presidente quando elogia o trabalho do Ministro da Saúde, Dr. Luiz Henrique Mandetta, e sua equipe, cujas ações têm sido de grande gestor na mais grave epidemia que o Brasil já enfrentou em sua história recente. Desde o início da epidemia, o Ministério da Saúde e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) estão trabalhando em conjunto com várias sociedades médicas científicas, em Página 12 de 21 especial com a Sociedade Brasileira de Infectologia, com várias reuniões presenciais, teleconferências e trocas de informações quase que diariamente.

Também concordamos que devemos ter enorme preocupação com o impacto socioeconômico desta pandemia e a preocupação com os empregos e sustento das famílias. Entretanto, do ponto de vista científico-epidemiológico, o distanciamento social é fundamental para conter a disseminação do novo Coronavírus, quando ele atinge a fase de transmissão comunitária. Essa medida deve ser associada ao isolamento respiratório dos pacientes que apresentam a doença, ao uso de equipamentos de proteção individual (EPI) pelos profissionais de saúde e à higienização frequente das mãos por toda a população. As medidas de maior ou menor restrição social vão depender da evolução da epidemia no Brasil e, nas próximas semanas, poderemos ter diferentes medidas para regiões que apresentem fases distantes da sua disseminação.

Quando a COVID-19 chega à fase de franca disseminação comunitária, a maior restrição social, com fechamento do comércio e da indústria não essencial, além de não permitir aglomerações humanas, se impõe. Por isso, ela está sendo tomada em países europeus desenvolvidos e nos Estados Unidos da América. Médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas e todos os demais profissionais de saúde estão trabalhando arduamente nos hospitais e unidades de saúde em todo o país.

A epidemia é dinâmica, assim como devem ser as medidas para minimizar sua disseminação. “Ficar em casa” é a resposta mais adequada para a maioria das cidades brasileiras neste momento, principalmente as mais populosas.” A leitura da sobredita nota é suficiente para verificar que o Decreto Estadual vai de encontro às orientações da Sociedade Brasileira de Infectologia, cujos profissionais que a compõem detêm inegável conhecimento técnico sobre o assunto, pois a recomendação dada por ela é diametralmente contrária ao diploma estadual, que autoriza o funcionamento de inúmeras atividades comerciais, não consideradas essenciais pelo Decreto Presidencial nº 10.292/2020. O crescimento do número de novos casos é exponencial e, embora haja enorme preocupação com a economia do país e a preservação de empregos – como, a todo momento, se vê nos noticiários locais, nacionais e internacionais –, estes não podem se sobrepor ao direito à vida, que neste momento exige medidas mais restritivas à circulação de pessoas, sendo recomendado, como visto, o isolamento social, principalmente da população idosa.

De acordo com o Informe da Sociedade Brasileira de Infectologia para o público em geral, atualizado em 23/03/2020, “a transmissão ocorre de pessoa a pessoa pelo ar, por meio de gotículas exaladas pela pessoa doente quando ela fala, tosse ou espirro. Quando a pessoa doente toca em objetos ou aperta a mão de outra pessoa e esta coloca a mão a sua boca, nariz ou olhos, ocorre a infecção.” [Disponível em https://www.infectologia.org.br/admin/zcloud/125/2020/03/a10bbe8ddf9c de769147d60d71b6167070428492465e82ee96bdf67f8d20a011.pdf].

Essa informação permite concluir que, em locais de grande circulação, é praticamente impossível assegurar que o simples Página 14 de 21 distanciamento entre as pessoas evitará o contágio, pois até mesmo o contato com um simples corrimão ou maçaneta é suficiente para a propagação da doença. Impende anotar que, segundo a Organização Mundial de Saúde, o Ministério da Saúde e toda a comunidade científica mundial, a prevenção, pelo isolamento social, hoje é a única medida a ser adotada. Mais que uma obrigação, o Estado tem o dever de prestar os serviços necessários à devida assistência à saúde do cidadão, de forma a preservar sua vida, com todos os requisitos indispensáveis a uma existência digna. A Carta Republicana ainda assegura ao Município a competência para legislar “sobre assuntos de interesse local” [art. 30, I, da CF/88]. Para HELY LOPES MEIRELLES, “o que define e caracteriza o ‘interesse local’, inscrito como dogma constitucional, é a predominância do interesse do Município sobre o do Estado ou da União” [Direito Municipal Brasileiro, 6ª edição, São Paulo: Malheiros, 1993, pág. 98- destaquei]. SÍLVIA CAPELLI, no que diz respeito à competência legislativa concorrente, assevera que “havendo conflitos entre legislações, deve predominar aquela mais restritiva (desde que cada uma se atenha ao campo próprio de seus interesses predominantes), já que, no caso, visa-se à satisfação do interesse público” [MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Annelise; CAPPELI, Sílvia. Direito Ambiental. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2011, p. 80 - grifado]. A solução deve ser buscada considerando a norma que melhor defenda o direito fundamental tutelado – in casu, o direito à saúde Página 15 de 21 – por se tratar de garantia constitucional, que se sobrepõe ao interesse que o Decreto Estadual visa assegurar. Assim, conhecedor da real situação da saúde pública no âmbito municipal, assim como das suas limitações, o Município de Cuiabá, ao editar o Decreto Municipal nº 7.849/2020, agiu dentro da competência que lhe é atribuída pelo art. 23, II, da Carta Maior, recentemente reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal, na citada decisão do Ministro Marco Aurélio, bem como pelo art. 30, I, da Lex Magna.

O indigitado Decreto Municipal encontra respaldo, ainda, no art. 3º da Lei n. 13.979/2020, com a finalidade precípua de assegurar o direito fundamental à saúde da população cuiabana, diante da situação fática que se esquadrinha nos nosocômios e nas unidades de saúde locais. A alta taxa de ocupação nas UTI’s da capital matogrossense é conhecida do Poder Judiciário, que constantemente se vê às voltas com ações judiciais que buscam a internação de pacientes em hospitais da rede particular, em razão da inexistência de leitos no SUS – Sistema Único de Saúde. E, por vezes, sequer na rede privada eles estão disponíveis. Em reforço ao já asseverado acima, acresço as seguintes considerações. São os critérios de competência que dão às normas a sua hierárquica, todas sustentadas na Constituição Federal. O que coloca as leis em posição de superioridade ou inferioridade, em relação umas às outras, é a sua espécie, e o exercício de competências legislativas que dará à lei a sua posição hierárquica [CARVALHO, 2010, pág. 1038]. Página 16 de 21 A competência de cada ente tem estreita relação com o que a norma visa resguardar, se nacional, estadual ou municipal. Quando concorrente a competência, à União cabe a edição de normas gerais [CF, art. 24, § 1º], deixando aos demais entes a competência para particularizálas segundo seus interesses, desde que não contrariem a lei geral. A saúde se insere entre as matérias em que a competência é concorrente, da espécie não cumulativa [CF, arts. 23, II, e 24, XII], de modo que, aos Municípios, se permite editar leis [em sentido lato sensu] sobre saúde e vigilância sanitária, de interesse local e específico, suplementando outras de nível federal e estadual, sem esgarçamento destas [CF, art. 30, II]. Nesse caso, a competência é fracionada em níveis, descendo, em linha vertical, da União aos Municípios, que atuam sempre em cooperação, com vistas ao bem estar em âmbito nacional. Diante da hierarquização, é evidente que não pode a lei municipal afrontar o que dispuser a norma federal e a estadual. Todavia, é defeso invadir a competência do Município, naquilo que diz respeito a interesse local, sob pena de inconstitucionalidade. Na competência concorrente, prevalece a norma de maior abrangência, em face dos interesses maiores da nação e do efeito integrador dela. Não significa dizer, entretanto, que a lei federal possa fugir da definição das normas gerais para fixar o que seria da complementação dos Estados e dos Municípios [CF, art. 24, §§1º e 2º]. Claro que, não havendo lei federal sobre normas gerais, os demais entes podem exercer competência legislativa plena [CF, art. 24, § 2º], tanto que, sobrevindo norma da União, fica suspensa a eficácia da lei estadual, naquilo que lhe for contrário [CF, art. 24, § 3º]. Página 17 de 21 Diante da verticalização que a competência concorrente implica, há um condomínio legislativo, onde cada ente deve atuar no seu respectivo âmbito, de modo que à União cabe disciplinar, na lei federal, as suas linhas-mestras, os seus princípios, as suas diretrizes e as suas regras jurídicas básicas, deixando ao Estado o poder de suplementar aquilo que for do interesse estadual como um todo, segundo as peculiaridades e exigências regionais, sem invadir a competência (não residual, como defendem alguns) dos Municípios, naquilo que concerne ao interesse local. A especificidade e a particularidade da norma estadual, suplementando a federal, não pode ir ao ponto de suprimir ou sobrepor legítimos interesses do Município, no que não for do interesse comum do Estado.

No caso, nos colocamos sob dois interesses legítimos: o econômico e o da saúde pública da população cuiabana. De um lado, temos o Estado de Mato Grosso que, sem abandonar sua preocupação com a pandemia, que, dia a dia, toma conta do país, não pretende calamizar também a economia do Estado; de outro, o Município de Cuiabá – que também tem suas burras afetadas, diga-se de passagem – que centra maior preocupação com a sua capacidade de responder um surto epidêmico na cidade de maior densidade demográfica desta unidade federativa. Na preponderância entre o interesse econômico e o interesse à saúde em geral, deve prevalecer o segundo. A vida é o bem maior do ser humano e a condição para ser tratado com dignidade [CF, art. 1º, II]. Página 18 de 21 Em sede de cognição limitada, entendo presentes os requisitos necessários à concessão da liminar vindicada. O Brasil é uma República Federativa formada pela União indissolúvel dos Estados, do Município e do Distrito Federal [CF, art. 1º], que são autônomos entre si, quanto à organização políticoadministrativa [CF, art. 18]. A autonomia é instrumentalizada pela distribuição de competência, conforme os interesses a serem preservados ou assegurados: se o interesse é nacional, a competência é da União; se regional, do Estado; se local, do Município.

A verticalização da lei, na competência concorrente, traz ínsita a ideia de que um não pode invadir a competência do outro. Assim, não pode a União – apesar de detentora do poder soberano –, legislar sobre tema afeto aos Estados e aos Municípios, a quem a Constituição autoriza atuar, privativa ou concorrentemente. E na competência concorrente, não se autoriza um ente esvaziar a competência do outro, de autolegislar sobre aquilo que for do seu interesse exclusivo e peculiar, quando a lei geral assim permite. O critério a ser seguido é o do interesse prevalecente ou predominante: a União representa o interesse nacional; o Estado o regional, e o Município o local. É certo que a lei municipal não pode tratar de aspectos gerais e principiológicos reservados à lei federal, nem esta descer ao nível de particularidade que restrinja a atuação do município, nas matérias em que a Constituição Federal estabelece competência concorrente. Página 19 de 21 Tratando-se de lei de competência concorrente não cumulativa ou vertical, há um condomínio legislativo, que reclama convivência harmônica entre os entes; traçadas as normas gerais, resta aos Estados preencher os claros existentes, segundo as peculiaridades e exigências regionais, e aos Municípios o que for do seu interesse local, desde que não contrarie ou afete o regional.

A situação poderia ser assim colocada: diante de uma epidemia com potencial para atingir toda a população de um Estado, o governo regional pode, dentro das normas gerais traçadas na legislação federal, determinar o fechamento de atividades econômicas e recolhimento de pessoas de uma determinada cidade, para impedir a disseminação e o alastramento da doença a outros Municípios. Todavia, não pode invadir a competência municipal para, sob o pretexto de legislar para o Estado, determinar o levantamento de restrições impostas pelo Município às atividades econômicas locais e aos munícipes, ordenadas para conter o avanço da epidemia, notadamente quando o ente menor demonstra não ter condição de atender a demanda pelo Sistema Único de Saúde, se se perder o controle sobre a contaminação. Repito: a maior restrição adotada no âmbito do Município de Cuiabá encontra amparo no art. 3º da Lei nº 13.979/2020, e não pode ser mitigada pelo Decreto nº 425/2020, pois interfere diretamente na competência da esfera municipal. É de conhecimento público – e os exemplos mundo afora demonstram – que a pandemia está tomando proporções assombrosas e alarmantes. Projeções mais otimistas mostram que, nos próximos dias, o Brasil contará com mais de 25.000 [vinte cinco mil] casos confirmados, podendo tomar proporções geométricas inimagináveis. Página 20 de 21 Também é de domínio público que o Estado de Mato Grosso não possui leitos de UTI para atender sequer a demanda corrente de doenças outras.

A ampliação de leitos de UTI, que o Governo do Estado pretende criar, não estarão disponíveis pelos próximos 20 [vinte] dias, tempo bastante para que a pandemia se agudize. A situação se torna mais grave na medida em que, afetando a COVID-19 os pulmões da pessoa acometida pelo vírus, o tempo médio de internação não é inferior a 15 [quinze] dias. Não é preciso ler borras de café para se prever o desastre que pode acontecer em Cuiabá, se levantadas as restrições impostas pelo impetrante. Em assim sendo, vislumbrando aparências de direito líquido e certo do impetrante, bem assim a existência de danos irreparáveis, se levantadas, indiscriminadamente, as restrições impostas pelo Município de Cuiabá para conter a pandemia, a liminar deve ser parcialmente concedida. Não é o caso, no entanto, de suspensão da integralidade do Decreto nº 425/2020, como almejado pelo impetrante, porquanto não se nega a competência da autoridade coatora para editar norma de caráter estadual, mas apenas dos dispositivos neles contidos que contrariam e/ou obstam a eficácia do Decreto Municipal nº 7.849/2020, quais sejam: artigo 3º, incisos I e II, artigo 4º, incisos XXXIX, LX e LXII, artigo 8º, § 2º, e artigo 13, todos do Decreto nº 425/2020, somente em relação ao impetrante, Município de Cuiabá, restando a eficácia deles mantida quanto aos demais municípios do Estado, não abrangidos nesta ação mandamental. 

Diante do exposto, CONCEDO PARCIALMENTE A SEGURANÇA almejada, para suspender as disposições contidas no artigo 3º, incisos I e II, artigo 4º, incisos XXXIX, LX e LXII, artigo 8º, § 2º, e artigo 13, todos do Decreto Estadual nº 425/2020, apenas em relação ao Município de Cuiabá, até o julgamento do mérito pelo órgão colegiado.

Notifique-se a autoridade coatora para prestar informações, no prazo legal, colacionando aos autos documentos que considere imprescindíveis para o esclarecimento dos fatos controvertidos. Após, colha-se manifestação da Procuradoria-Geral de Justiça. Intime-se.

Cumpra-se. Ao final do Plantão Judiciário, distribua-se na forma regimental.

Cuiabá, 29 de março de 2020.

Desembargador ORLANDO DE ALMEIDA PERRI,




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