• Cuiabá, 12 de Julho - 2025 00:00:00

O feminicídio reflete exatamente a ausência de políticas preventivas, assevera Sirlei Theis


Foto: Reportermt  - Foto: Foto: Reportermt Sirlei Theis é advogada, especialista em Gestão Pública, palestrante, treinadora comportamental e ativista no combate à violência contra a mulher
Sonia Fiori – Da Editoria

Oito meses depois de conceder entrevista ao FocoCidade, a advogada, especialista em Gestão Pública, palestrante, treinadora comportamental e ativista no combate à violência contra a mulher, Sirlei Theis, pontua nova análise profunda sobre o cenário alarmante que coloca Mato Grosso na lista dos estados com maior número de feminicídios do país.

Em novembro de 2018, Sirlei Theis cravou: “pesquisas mostram que 71% das mulheres não denunciam seus agressores”. De lá para cá, notadamente pouca evolução se verifica no âmbito de resultados sobre “redução” da violência contra a mulher.

“O estado de Mato Grosso continua como um dos estados que mais mata mulheres no Brasil e isso é reflexo da ausência de políticas públicas nessa área. O feminicídio, por ser o ápice da violência contra a mulher, reflete exatamente a ausência destas políticas preventivas.”

É nessa leitura de essência de causa que a ativista frisa um contexto de alerta, envolvendo a estrutura familiar, o papel do Estado e sociedade, e principalmente, a decisão de enfrentamento da mulher.  

Sobre a seara das ações no combate à violência contra a mulher, Sirlei Theis é categórica: “geralmente são ações isoladas e repressivas. Não se combate a criminalidade correndo atrás do crime. A única forma de minimizar essa questão a médio e longo prazo será investindo em políticas públicas preventivas, o que praticamente não existe no Brasil. A sociedade está doente, famílias desestruturadas se multiplicam e da mesma forma a violência. O poder público está muito preocupado em construir prédios para deixar a marca de alguém na placa de inauguração, como se isso fosse resolver o problema, quando na realidade o que se precisa é investir no ser humano”.

Theis ressalta ainda um dos aspectos mais relevantes nessa luta, o da prevenção, além de assinalar a extensão da problemática: “contudo, é importante lembrar que esse crime alcança todas as classes sociais e poder aquisitivo, todos os graus de instrução, de raça e idade”.

Confira a entrevista na íntegra:

Por que, apesar de todas as ações contra a violência às mulheres, temos um cenário de números alarmantes?

Geralmente são ações isoladas e repressivas. Não se combate a criminalidade correndo atrás do crime. A única forma de minimizar essa questão a médio e longo prazo será investindo em políticas públicas preventivas, o que praticamente não existe no Brasil. A sociedade está doente, famílias desestruturadas se multiplicam e da mesma forma a violência. O poder público está muito preocupado em construir prédios para deixar a marca de alguém na placa de inauguração, como se isso fosse resolver o problema, quando na realidade o que se precisa é investir no ser humano.

Temos uma vasta legislação, que atinge apenas o agressor que é “pobre” e isso pode ser constatado nos presídios ao apurar quem de fato encontra-se preso.

Segundo dados da Justiça, no primeiro trimestre deste ano, 24 mulheres foram assassinadas em Mato Grosso pela condição de ser mulher. No ano passado, houve 82 feminicídios no estado e, em 2017, 84 casos. Que leitura faz desse quadro já que o feminicídio figura no topo da violência contra a mulher?

O estado de Mato Grosso continua como um dos estados que mais mata mulheres no Brasil e isso é reflexo da ausência de políticas públicas nessa área. O feminicídio, por ser o ápice da violência contra a mulher, reflete exatamente a ausência destas políticas preventivas. Vivemos em uma sociedade muito machista, um padrão que tem se replicado de geração em geração e isso só vai mudar quando essa questão social também mudar e a única forma de fazer isso é investindo em políticas públicas eficientes. Hoje sequer o sistema repressivo funciona como deveria. Temos uma vasta legislação, que atinge apenas o agressor que é “pobre” e isso pode ser constatado nos presídios ao apurar quem de fato encontra-se preso. Em contrapartida aquele que tem dinheiro dificilmente vai ou fica preso e quando tem a sua prisão declarada, contrata um bom advogado, paga a fiança e tem a sua soltura declarada na audiência de custódia. Contudo, é importante lembrar que esse crime alcança todas as classes sociais e poder aquisitivo, todos os graus de instrução, de raça e idade. De acordo com as estatísticas realizadas pela Delegacia Especializada da Mulher de Cuiabá, a maioria das mulheres que tem procurado a Delegacia, são mulheres de poder aquisitivo baixo, sem nível superior. Essa estatística não significa que a violência contra a mulher atinge somente esse perfil, ao contrário, a estatística mostra que quem tem maior instrução, tem muito mais medo de denunciar, porque consegue fazer uma leitura mais clara de como funciona o sistema. Eu não falo isso baseado em achismo, falo com base no feedback das palestras que ministro e nas mentorias, onde tenho acompanhado mulheres de todo o Brasil. Imagine você casada com um agressor, que tem poder aquisitivo alto, controle financeiro e influência na sociedade. Nestas condições quem teria coragem de denunciar e voltar para casa com um papel nas mãos, sabendo que ele não ficará preso. Geralmente, as mulheres que vivem no universo da “classe A” brasileira, só conseguem sair do ciclo da violência se fugirem, deixando para trás tudo que construíram ao longo de uma vida e quando não fazem isso, acabam pagando com a vida. Sou um desses casos. Casei com um homem que se dizia amigo dos poderosos. Logo no primeiro episódio de violência física, quase me matou, ele me espancou dentro da casa dos pais dele, fui salva pela mãe dele que conseguiu impedir que ele concluísse o ato. Eu vi no olhar dele aquele dia, do que era capaz, então veio o cárcere e o controle absoluto da minha vida. Eu tinha medo de contar para alguém, eu tinha medo de tudo. Foram quase nove anos vivendo esta relação abusiva. Só consegui dar o primeiro passo graças a uma amiga que me ajudou a fugir para o interior do Estado, deixando tudo para trás. Oito meses depois ele me encontrou e a dependência emocional me manteve presa a ele mesmo morando em outra cidade. Fiquei dois anos e meio dessa forma até que passei num concurso que me colocou no coração da segurança pública, assim naturalmente ele me deixou em paz. Naquela época não existia lei Maria da Penha, então no quesito legislação avançamos bastante, mas sem políticas públicas para implementar essas leis, temos esse resultado de pouca efetividade no combate a este tipo de violência.

Esse enfrentamento conta com avanços, como a ampliação dos trabalhos da Patrulha Maria da Penha. É o caminho?

A Patrulha é uma evolução importante, mas não apresenta o resultado que poderia, quando a Rede de Proteção à Mulher não funciona no respectivo Município (a Rede são órgãos de todos os segmentos envolvidos, como: executivo Municipal e Estadual, Legislativo, Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública, dentre outros). Temos um exemplo positivo no Município de Barra do Garças, onde a Rede de Proteção à Mulher foi implantado de forma efetiva entre todos os órgãos envolvidos. Lá teve uma redução do crime de feminicídio. A rede deveria funcionar da mesma forma em todos os Municípios do Estado, mas por questões políticas em muitos deles não acontece. Enquanto tivermos gestores governando para seus pares e não para a sociedade, o cidadão sairá perdendo, nesse caso, as vítimas.

Em audiência sobre o assunto realizado no decorrer deste ano um dos tópicos se ateve “a banalização de episódios anteriores de violência e a culpabilização da mulher como itens que favorecem a impunidade também foram identificados na audiência”. A “impunidade” ainda é uma das maiores problemáticas?

Com relação à hipótese “a banalização de episódios anteriores de violência e a culpabilização da mulher como itens que favorecem a impunidade”, posso afirmar que esse comportamento da mulher já é consequência da violência. Nenhuma mulher que esteja bem emocionalmente continuaria com um agressor de alta complexidade, por opção. Ela volta porque desenvolveu dependência emocional e precisa de ajuda profissional, ajuda esta, que poucas mulheres têm acesso, porque também estão dependentes financeiramente do agressor e também porque o Poder Público não oferece. A dependência emocional, somada à perda da autoestima, autoconfiança e muitas vezes da depressão, faz com que a vítima continue no ciclo da violência. Ela não consegue sozinha colocar um fim àquele sofrimento. Ao procurar a Delegacia, na maioria das vezes, a vítima está precisando de um atendimento psicológico ou jurídico, mas a porta de entrada para o atendimento é a Delegacia e como não está preparada emocionalmente para aquele rompimento, acaba voltando para o agressor, colocando em risco sua própria vida. Isso contribui com certeza para o aumento dos casos de feminicídio, mas não é a causa principal do problema. A Impunidade, com certeza contribui muito para o aumento do feminicídio, mas também não é a causa principal. A questão é social, não tem como negar isso e a grande maioria dos agressores e vítimas já são o resultado da violência, onde replicam comportamentos e reproduzem padrões presenciados na infância e enquanto não se atacar esta causa com políticas públicas preventivas, a violência continua.

A desestrutura familiar favorece a perpetuação da violência.

Outro ponto que gera debate se refere ao fator psicológico de quem pratica a violência, considerando que muitas vezes o agressor não reconhece essa relação como abusiva. Como avançar nesse cenário em que as construções sociais contribuem para a legitimação da violência contra a mulher?

A desestrutura familiar favorece a perpetuação da violência. Vou exemplificar. Uma criança que cresce num ambiente onde o pai trata a mãe com grosseria, ofensas, humilhações, controle, invasão de privacidade, ciúme excessivo, dentre outros. Nesse exemplo, nem vou usar a violência física, contudo faço uma ressalva, que esse tipo de comportamento afeta o emocional da pessoa e faz tanto ou mais mal que a violência física. Se um menino cresce vendo esse modelo de tratamento, o padrão de tratamento para com uma mulher que esse menino vai levar para a vida adulta será o mesmo que conheceu na infância. Por isso, muitas vezes não consegue se identificar como um abusador, entendendo como normal seu comportamento, pois foi como aprendeu. Se for uma menina, também vai crescer com um padrão equivocado de como é ser bem tratada por um homem e do tratamento que uma mulher merece. Dessa forma o ciclo continua, porque não se combate a causa. Essa realidade somente vai mudar se a sociedade como um todo se envolver e começar a desenvolver uma grande ação conjunta entre a iniciativa privada, pública, terceiro setor, escolas públicas, privadas e em especial o quarto Poder (meios de comunicação em massa), entre outros, para promover uma grande ação de desenvolvimento comportamental do núcleo familiar. Eu tenho o projeto pronto para promover a maior ação no combate à violência contra a mulher no Brasil e acredito que será concretizado em breve.

Todo trauma, mesmo os mais delicados e doloridos, podem ser tratados com a ajuda de profissionais e acima de tudo vontade.

Outro ponto constantemente levantado em audiências públicas se atém “à violência institucional” – aquela pontuada no ambiente de trabalho por agentes públicos. Seria uma agressão de profissionais desqualificados ao atender um relato de agressão. Como mudar esse quadro de despreparo no acolhimento à vítima de forma urgente?

A violência institucional, que presenciamos no ambiente de trabalho por profissionais desqualificados e despreparados para atender um relato de agressão, também é um reflexo do que o profissional é em casa e do preconceito da sociedade com esse tipo de crime, principalmente por não compreender a complexidade da questão. A única forma de resolver isso é por meio de investindo na capacitação adequada de todos os profissionais da segurança pública. Falo todos, porque entendo que deveria fazer parte do curso de formação de todos os profissionais da segurança, tendo em vista a grande rotatividade dos profissionais. Recentemente eu ministrei aula de gestão administrativa para o curso formação de 18 Delegados da Polícia Civil, 15 homens e três mulheres. Eles solicitaram para eu ministrar a minha palestra durante a semana de aulas. Consegui adiantar o conteúdo das aulas e no último dia ministrei a palestra.  Como a palestra que ministro não tem uma abordagem meramente técnica, mas também emotiva, tive um feedback muito positivo e tenho certeza que nas Delegacias que serão comandadas por esses 18 Delegados, as vítimas de relacionamentos abusivos vão receber um atendimento humanizado. Entender os passos que levam ao feminicídio e a dinâmica do ciclo da violência é fundamental para todos, sejam da segurança pública ou não. A capacitação e treinamentos deve ocorrer com os profissionais de todos os órgãos envolvidos que fazem parte da rede de atendimento à mulher.

Entidades e órgãos tem se unido para combater essa triste realidade, inclusive com lançamentos de cartilhas. Mas qual o papel e responsabilidade da família nesse processo?

Diante de tudo que falei até aqui já deu para perceber que a causa está exatamente no núcleo familiar. Tudo começa exatamente ali. Família desestruturada reproduz novas famílias desestruturadas. Uma mãe doente, vivendo em um relacionamento conturbado violento e submissa, não está em condições de educar um filho com mente livre. Essas crianças vão crescer com traumas, que nada mais são do que janelas traumáticas que serão armadas quando um gatilho mental for acionado disparando e reproduzindo a violência. Informações ajudam, mas não são suficientes, é necessário ir além. Essa semana gravamos um vídeo que vai fazer parte da minha palestra, com crianças entre oito e 10 anos, cujo objetivo é mostrar que no mundo das crianças, homem não bate em mulher e foi incrível, como elas têm noção do certo e do errado, pois nenhum deles sabia do que se tratava a gravação e as expressões capturadas pelas Câmeras são reais e sem ensaio. O que precisa ser feito é exatamente isso, cuidar dessas crianças e possibilitar uma educação equilibrada entre meninos e meninas e isso começa dentro de casa, com os pais ensinando aos seus filhos o respeito a mulher. Todo trauma, mesmo os mais delicados e doloridos, podem ser tratados com a ajuda de profissionais e acima de tudo vontade.

É necessário majorar as penas, não só nos casos de violência contra a mulher, mas na violência contra as pessoas.

E qual a responsabilidade do Estado, poder público, nessa seara?

O Estado é o grande responsável pela implementação das políticas públicas para mudar essa realidade. É preciso se conscientizar que não adianta fazer leis se não viabilizar recurso para implementação. A vítima de violência não quer saber o nome que vai levar uma agravante quando for assassinada, simplesmente por ser mulher. O que ela quer é que o seu agressor seja punido e/ou conduzido a um tratamento psicológico quando lhe ameaça de morte, quando lhe agride psicologicamente, fisicamente ou sexual. O nome que a sua morte vai levar, não lhe interessa porque se isso acontecer, significa que para ela já terá sido tarde. É necessário majorar as penas, não só nos casos de violência contra a mulher, mas na violência contra as pessoas. A vítima quer se sentir segura e como isso pode acontecer se o criminoso, o abusador, o perseguidor, não vai preso enquanto não mata. Entendo que as penas de lesão corporal, violência psicológica, financeira, sexual, dentre outras, precisam ter suas penas majoradas não só quando a mulher for vítima, mas quando qualquer ser humano for vítima e que os infratores paguem por esses crimes. Se as penas previstas para crimes de menor potencial ofensivo, como lesão corporal, atingissem o seu objetivo, com certeza o número de mulheres mortas seria menor, principalmente se for acompanhado de tratamento comportamental do agressor e das vítimas diretas e indiretas.

Sua mensagem às mulheres. 

Mulher, olhe para dentro de si, ouça um pouco seu coração e fique atenta no início de um relacionamento porque os agressores dão sinais, que muitas vezes são relevados por você porque quer acreditar que ele vai voltar a ser aquele homem maravilhoso que você conheceu. Aprenda a amar mais do que tudo a única pessoa que pode te manter viva, que é você mesma. Nunca deixe ninguém fazer você acreditar que não é capaz, que não é autossuficiente, pois você é merecedora do melhor e não aceite nada menos do que isso.




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