Buenos Aires não se deixa conhecer de uma vez. Ela se insinua. Caminha ao lado do visitante como quem conta histórias sem pressa, misturando passado e presente, razão e paixão. Passear por suas ruas, como me encontro com a família, é entrar em uma cidade que nunca se contentou em apenas existir: ela pensa, discute, escreve — e grita gol.
A Argentina nasceu de disputas e contradições, e Buenos Aires sempre foi o palco principal. Porto aberto ao Atlântico, a cidade recebeu imigrantes, ideias e conflitos. Italianos, espanhóis, anarquistas, liberais e sonhadores ajudaram a formar esse temperamento intenso, às vezes melancólico, às vezes explosivo. Não é por acaso que daqui saiu o tango, esse sentimento coreografado que, como dizia Ernesto Sabato, é “um pensamento triste que se dança”.
Alguns lugares ajudam a decifrar essa alma. A Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires, monumental, parece lembrar que o país sempre apostou na palavra escrita, na lei e na República, mesmo quando a realidade insistiu em contrariar o ideal. O MALBA, por sua vez, mostra uma Argentina que dialoga com a América Latina e com o mundo, sem pedir licença nem pedir desculpas. Solar, Frida Kahlo, cores, rupturas — arte como forma de pensar o continente.
Buenos Aires também é feita de livros. A livraria El Ateneo, instalada em um antigo teatro, talvez seja a melhor metáfora da cidade: onde antes havia espetáculo, hoje há leitura. Jorge Luis Borges — que dizia que “sempre imaginou o paraíso como uma biblioteca” — parece caminhar silencioso entre as estantes. Ao lado dele, Julio Cortázar e Sabato compõem um trio que transformou a literatura argentina em patrimônio universal. Aqui, a cidade não apenas inspira escritores: ela exige que se escreva sobre ela.
Do alto do ônibus aberto, percorrendo avenidas largas e bairros contrastantes, a cidade se deixa ver como síntese de suas próprias tensões. Buenos Aires não esconde suas cicatrizes: palácios e moradias simples dividem o mesmo trajeto, monumentos republicanos convivem com estádios populares e a política parece sempre à espreita, mesmo quando ninguém a menciona. Há algo de pedagógico nesse passeio: ele ensina que esta é uma cidade construída pela sobreposição — de tempos, de projetos, de vozes — e que sua identidade nasce justamente do atrito entre elas.
E então vem o futebol. Entrar em La Bombonera é entender que, na Argentina, o futebol não é entretenimento: é identidade. O estádio do Boca Juniors pulsa como organismo vivo. Ali, Diego Maradona continua presente em cada canto. “A bola não se mancha”, disse ele — e a frase virou ética popular. Messi, mais silencioso, levou essa herança ao mundo com genialidade e perseverança. Di María, incansável, representa o esforço que o torcedor reconhece como virtude moral.
Para quem vem do Brasil, há um detalhe que aquece o coração: a torcida do Boca é amiga da torcida do Vasco da Gama. Uma aliança improvável, mas sincera, dessas que só o futebol sul-americano é capaz de criar. Em tempos de fronteiras duras, o futebol insiste em construir pontes.
Há ainda uma presença argentina que ultrapassou fronteiras e continua a ecoar: o papa Francisco. Nascido Jorge Mario Bergoglio, em Buenos Aires, ele carrega no sotaque, nos gestos e nas metáforas algo muito portenho — direto, desconfiado do luxo, atento aos que ficam à margem. Torcedor confesso do San Lorenzo, Francisco nunca escondeu que aprendeu mais sobre comunidade nas arquibancadas e nos bairros do que nos palácios. Sua insistência em uma “Igreja pobre para os pobres” dialoga com uma Argentina marcada por desigualdades persistentes e crises recorrentes, mas também por forte sensibilidade social. Quando afirmou que “a realidade é superior à ideia”, o saudoso papa parecia falar a partir dessa cidade concreta, feita de gente comum, debates intensos e contradições à flor da pele.
Buenos Aires se revela inteira no movimento: livrarias cheias, cafés antigos, estádio fervendo, museus silenciosos. Esta não é uma cidade para ser apenas fotografada. É uma cidade para ser lida — e relida — como um bom livro que nunca se esgota.
É por aí...
Gonçalo Antunes de Barros Neto (Saíto) é da Academia Mato-Grossense de Letras (Cadeira 7) e do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso – IHGMT (e-mail: podbedelhar@gmail.com).

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