O alcoolismo e adicção não sao apenas uma história de abuso de substâncias. É uma história de falta. É o corpo tentando anestesiar aquilo que a alma não suporta nomear, o grito silencioso de uma dor que não encontrou lugar para ser dita.
Reduzir o alcoolismo e adicção a desvio moral ou a um desequilíbrio químico do cérebro é ignorar sua complexidade: ela é solidão transformada em química, vazio transformado em hábito, tentativa desesperada de caber em um mundo que não acolhe.
O que a sociedade costuma oferecer a esse sofrimento é o cárcere, o rótulo, o olhar de desprezo. São prisões superlotadas, majoritariamente habitadas por jovens negros e periféricos, internados compulsoriamente como castigo.
O estigma social mata de forma lenta, corroendo a autoestima, multiplicando exclusões, alimentando a vergonha. A guerra às substâncias, apresentada como solução, é em verdade uma guerra contra pessoas — contra sua dignidade, contra seu direito de existir.
Mas ninguém supera o alcoolismo e adicção por medo da polícia ou por coerção. Supera quando encontra um rosto que não condena, uma mão que não solta, uma comunidade que não desiste.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção Americana asseguram a toda pessoa o direito à vida, à saúde, à liberdade e à não discriminação.
Ao transformar dor em caso de polícia, o Estado não apenas viola esses direitos básicos, como reforça o estigma e aprisiona a esperança.
Por isso, a pergunta que deveria nos mover não é “o que você usou?”, mas “do que você sente falta?”.
Um alcoólatra ou adicto não sente falta apenas da substância. Sente falta de pai, de mãe, de afeto, de futuro, de paz, de fé. Sente falta de si mesmo, da chance de ser reconhecido como alguém para além do erro.
A substância é prótese de um vazio, anestesia de uma perda não elaborada, remédio torto para uma ferida aberta.
É nesse ponto que a reflexão de Gabor Maté ilumina com rara clareza: “A dor é o tema central do vício. Só quem está com grande dor deseja anestesiá-la.
Então, não pergunte por que do vício. Pergunte o porquê da dor.” Essa inversão é radical.
A substância não é a raiz, mas a sombra de uma raiz mais funda. O que se deve perguntar não é pelo uso em si, mas pelo sofrimento que o sustenta.
A dor que conduz ao vício pode ter mil rostos: abandono, abuso, perda precoce, pobreza, violência, racismo, invisibilidade social.
É dor íntima, mas também social e histórica. Reconhecê-la é o primeiro passo para que o vício deixe de ser a única saída.
Mas como tratar e curar essa dor?
Não com algemas, mas com vínculos. Não com isolamento, mas com comunidade. Não com repressão, mas com políticas públicas que ofereçam saúde, moradia, educação, cultura, trabalho e espiritualidade.
Tratar a dor é transformar vergonha em dignidade, silêncio em fala, solidão em laço.
A psicanálise nos ensina que a adicção é forma de gozo mortífero, laço com um objeto absoluto que promete completude mas aprisiona em repetição sem saída. A substância aparece como parceiro fiel, mas que isola o sujeito de todo encontro com o Outro.
A cura, nesse horizonte, não é preencher o vazio, mas aprender a habitá-lo, permitindo que o desejo possa renascer.
A psicologia humanista lembra que a adicção é também a dor da ausência de sentido. Viktor Frankl dizia: “Quem tem um porquê enfrenta qualquer como.” Quando o “porquê” se perde, a droga aparece como atalho torto para continuar.
Carl Rogers acrescentava: somente em um espaço de aceitação incondicional alguém pode florescer novamente. Aqui, a cura é reencontrar propósito, autenticidade e liberdade interior.
A psicologia analítica de Jung aprofunda ainda mais: a adicção é uma busca inconsciente de religação com o Self, um anseio por plenitude espiritual. A substância funciona como objeto sagrado falsificado, promessa de integração que aprisiona em fragmentação.
Para Jung, só o contato com símbolos, sonhos e rituais pode oferecer à psique o alimento que a substância simula, mas nunca entrega. Curar, nesse sentido, é ajudar a alma a religar-se ao sentido profundo da vida.
E nesse campo das práticas, o programa dos 12 passos emerge como um dos maiores testemunhos da potência comunitária de cura. Nele, a dor individual encontra eco na experiência coletiva.
O primeiro passo — admitir a impotência diante da substância — já rompe com o narcisismo do controle absoluto, abrindo espaço para a humildade e a entrega.
Os passos seguintes convidam à reconciliação com a própria história, à reparação dos danos causados, ao reencontro com uma dimensão espiritual maior que o ego.
O programa dos 12 passos é radical porque substitui a lógica da punição pela da partilha: ninguém é punido, todos são convidados a falar; ninguém é superior, todos estão em processo.
Ele oferece um caminho de sentido (Frankl), um espaço de aceitação incondicional (Rogers), um itinerário simbólico de integração (Jung) e uma travessia ética diante da falta (Lacan).
Mais que uma técnica, é uma espiritualidade prática que lembra ao adicto que a dor pode ser nomeada, partilhada e transformada.
Cada reunião é um ato de direitos humanos: direito de falar sem ser interrompido, direito de ser ouvido sem ser julgado, direito de recomeçar apesar das quedas.
A superação da adicção, assim, não significa apagar o passado, mas integrá-lo. Significa cicatrizar sem esquecer, atravessar a dor sem precisar anestesiá-la, reconstruir o desejo e reencontrar o direito de sonhar.
Entre o desespero da morte e a liberdade da vida, o programa dos 12 passos oferece uma ponte: passos pequenos, mas partilhados, sustentados pela fé em algo maior que o próprio ego.
Essas leituras convergem em uma lição: ninguém se cura sozinho. O alcoolismo e adicção denunciam a falha íntima de suportar a falta; os direitos humanos denunciam o fracasso coletivo de sustentar a diferença. A travessia exige comunidade, ética e espiritualidade.
No fim, recuperar do alcoolismo e adicção é também curar a relação com a dor. Não apagando-a, mas permitindo que ela se torne fonte de compaixão, responsabilidade e recomeço.
A sociedade que insiste em perguntar “por que você usa?” continuará condenando. Mas aquela que ousa perguntar “qual é a sua dor e como posso caminhar com você?” estará inaugurando o espaço onde nasce a verdadeira cura.
Paulo Lemos é advogado em Mato Grosso.
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