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Shopping Center: obrigação de fazer e multa contratual

  • Artigo por Francisco dos Santos Dias Bloch
  • 27/03/2025 09:03:07
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Os contratos de locação em shopping centers preveem multas relevantes aos lojistas. É comum a fixação de valores na ordem de três aluguéis, ou mais, como penalidade geral para a maioria das infrações contratuais: também é comum o estabelecimento de multas diárias.

Certas penalidades, todavia, especialmente aquelas que preveem multas diárias, extrapolam os limites do razoável.

O presente estudo tem por fim verificar quais normas legais possibilitam a redução das multas por infração contratual em shopping centers, referentes às obrigações de fazer (e obrigações de não fazer) previstas nos acordos locatícios. Ou seja, trataremos das penalidades que não decorrem da rescisão antecipada do contrato de locação, ou do inadimplemento de valores.

Neste contexto, as operadoras de shopping centers frequentemente justificam os valores exigidos com base no artigo 54 da Lei 8.245/91, a Lei do Inquilinato, que estabelece que "Nas relações entre lojistas e empreendedores de shopping centers, prevalecerão as condições livremente pactuadas nos contratos de locação respectivos e as disposições procedimentais previstas nesta lei".

O dispositivo legal, todavia, tem por escopo apenas permitir e facilitar a operação dos shopping centers, segundo o entendimento de Sylvio Capanema de Souza[i]. Mas não autoriza a ofensa a normas de ordem pública, devendo ser aplicadas as disposições pertinentes do Código Civil e do Código de Processo Civil, conforme previsão expressa da Lei do Inquilinato.[ii]

Neste contexto, a jurisprudência atual do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo autoriza a redução de multas abusivas em caso de rescisão antecipada da locação, com base no Código Civil Brasileiro.[iii] O Superior Tribunal de Justiça, em especial, determina a aplicação do artigo 413 do Código Civil[iv] com o fim de reduzir as multas rescisórias das locações em shopping centers, considerando que referido artigo é complementar ao artigo 4.º da Lei do Inquilinato.[v] [vi]

Resta claro, portanto, que é possível a redução dos valores estipulados a título de multa rescisória pelo encerramento antecipado destes contratos de locação, com base nas normas do Código Civil e em outras normas legais pertinentes. Esta afirmação é baseada no princípio segundo o qual nenhuma disposição contratual prevalece em face de preceitos de ordem pública, especialmente as disposições legais atinentes à função social dos contratos, conforme disposto no parágrafo único do artigo 2035 daquele texto legal.[vii]

Seguindo o mesmo raciocínio, entendemos ser possível a redução das multas referentes às obrigações de fazer e não fazer impostas aos lojistas, também com base nas normas de ordem pública estabelecidas no Código Civil.

Ultrapassados estes pontos, é necessário analisar as normas que tratam das cláusulas contratuais penais na legislação civil brasileira.

As cláusulas penais são regulamentadas pelos artigos 408 a 416 do Código Civil brasileiro, e podem referir-se à inexecução completa da obrigação, à inexecução de alguma cláusula específica, ou simplesmente à mora, conforme o disposto no artigo 409.[viii] Importa a este estudo verificar as possibilidades legais de revisão contratual para a segunda hipótese, ou seja, a multa pela inexecução de obrigação contratual específica, especialmente quanto às obrigações de fazer ou não fazer impostas ao lojista.

Diante deste quadro, há dois artigos relevantes do Código Civil a serem analisados, ora transcritos: "Art. 412. O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal. Art. 413. A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio.".

As normas positivadas nos artigos mencionados são de ordem pública, conforme o entendimento jurisprudencial pertinente, e sobrepõem-se a qualquer norma contratual.[ix] De fato, os limites legais às multas contratuais ora mencionados têm por escopo evitar abusos e o enriquecimento sem causa do credor, o que é vedado pelo Código Civil[x], conforme reconhece a jurisprudência.[xi]

Importa, assim, verificar a sua extensão e aplicabilidade às multas por infração contratual decorrentes do descumprimento de obrigações de fazer e não fazer, previstas em contratos de locação de espaço em shopping centers. E os artigos 412 e 413 do Código Civil estabelecem os seguintes limites para as multas contratuais:

1 – A multa deverá sempre ser reduzida de forma equitativa pelo juiz em duas hipóteses, quais sejam, o cumprimento parcial da obrigação contratual, ou o valor excessivo da penalidade.

2 – A multa contratual não pode ser superior ao valor da obrigação principal, cujo descumprimento resultou na aplicação daquela penalidade.

A primeira hipótese de redução da multa contratual, portanto, é a redução equitativa em caso de excesso da penalidade, considerando o eventual cumprimento parcial da obrigação, assim como a natureza e a finalidade da obrigação contratual específica descumprida pelo lojista, conforme o artigo 413 do Código Civil brasileiro.

Esta redução equitativa aplica-se a toda e qualquer infração contratual, e deverá ser estabelecida pelo juiz com base na situação específica que deu ensejo à penalidade, como a gravidade da situação, a reincidência do infrator, e a necessidade de evitar enriquecimento sem causa do empreendedor do shopping center.

A título de exemplo, o descumprimento pontual à obrigação de operar a loja em determinados horários dificilmente justifica a imposição de multas relevantes, da ordem de três ou mais aluguéis mensais: uma penalidade desta monta pode e deve ser reduzida pelo Poder Judiciário.

Já o limite atinente ao valor da multa, em relação à obrigação principal, merece analise mais detalhada.

Vale recordar que o objeto da presente análise são os limites às multas por inexecução de obrigação contratual específica, de fazer ou não fazer, nos termos do artigo 409 do Código Civil. Neste contexto, e acaso a infração contratual que enseja a penalidade decorra de descumprimento a obrigação contratual que possua valor econômico, o valor desta obrigação principal constituirá o limite para a multa, na forma do artigo 412 do mesmo texto legal.

Assim, e a título de exemplo, se o lojista deixar de informar o valor correto de seu faturamento para a apuração do valor devido a título de aluguel percentual (incidente sobre o faturamento da loja), o valor eventualmente pago a menor pelo inquilino será o limite superior da multa. Não é possível, afinal, que um prejuízo da ordem de alguns milhares de reais resulte em uma multa de um ou mais milhões de reais.

Estas penalidades desproporcionais, em shopping centers, ocorrem com frequência em se tratando de multas diárias. O Poder Judiciário, todavia, pode revisar acordos particulares que estipulem multas contratuais periódicas sem limites, especialmente para evitar o enriquecimento sem causa do credor.[xii]

Em última análise, o contrato de locação de espaços comerciais em shopping centers encontra limites nas normas de ordem pública do Código Civil, entre outras leis, e suas cláusulas encontram-se sujeitas à revisão pelo Poder Judiciário, especialmente quanto ao valor das multas aplicadas pelos empreendedores dos centros comerciais.

 

*Francisco dos Santos Dias Bloch é mestre e pós-graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É advogado formado pela PUC/SP, e atua em São Paulo, no escritório Cerveira Advogados Associados (www.cerveiraadvogados.com.br), nas áreas de Direito Imobiliário e Direito Contencioso Cível.

[i] Capanema de Souza, Sylvio. "A Lei do Inquilinato Comentada". Ed. Forense, 10ª Edição, Rio de Janeiro: 2017, página 252: "Já tivemos oportunidade de observar que esses contratos de locação contém cláusulas atípicas. Entre elas podemos citar: a) a que estabelece sistema dúplice de cobrança do aluguel, sendo um fixo, mínimo, e outro percentual, sobre o total da receita mensal, sendo devido o maior deles, a cada mês; b) a que prevê o pagamento de aluguel em dobro, no mês de dezembro; c) a que obriga o locatário a se inscrever na Associação dos Lojistas e participar do fundo comum de promoções, propaganda e marketing; d) a que obriga o locatário a abrir e fechar a loja nos horários determinados pelo empreendedor e a não fazer promoções ou liquidações, senão na mesma época, sendo-lhe vedado ainda mudar o ramo de negócio. Poderíamos citar muitas outras, que procuram preservar a filosofia de trabalho e de produção em que se baseia um shopping center. Estas disposições não chegam a descaracterizar o contrato, retirando-lhe a natureza jurídica de locação, mas criam diferenças significativas, que exigem tratamento legal também diverso. São essas condições especiais, de conteúdo puramente econômico, que o artigo 54 preserva, até para que o próprio empreendimento sobreviva."

[ii] Lei 8.245/91: "Art. 79. No que for omissa esta lei aplicam-se as normas do Código Civil e do Código de Processo Civil."

[iii] Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação Cível n.º 1032917-73.2023.8.26.0576, julgamento 14/11/2024: "APELAÇÃO. LOCAÇÃO COMERCIAL. ESPAÇO COMERCIAL EM "SHOPPING CENTER". Ação declaratória de abusividade de cláusula penal. Sentença de procedência dos pedidos. Apelação da ré. Ausência de demonstração de que as condições do Shopping Center levaram ao insucesso do lojista. Isenção da multa devida pela resolução antecipada do contrato. Não cabimento. Real alteração das bases objetivas do negócio não identificada no caso concreto. Redução da multa que, no entanto, se mostra rigor. Inteligência dos artigos 4º da Lei n. 8.245/91 e 413 do Código Civil. Sentença mantida. RECURSO NÃO PROVIDO."

[iv] Código Civil: "Art. 413. A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio."

[v] Lei 8.245/91: "Art. 4o Durante o prazo estipulado para a duração do contrato, não poderá o locador reaver o imóvel alugado. Com exceção ao que estipula o § 2o do art. 54-A, o locatário, todavia, poderá devolvê-lo, pagando a multa pactuada, proporcional ao período de cumprimento do contrato, ou, na sua falta, a que for judicialmente estipulada." 

[vi] Superior Tribunal de Justiça, REsp n.º 1.353.927-SP, 4ª Turma, julgamento 17/05/2018: "(...) à luz do disposto no artigo 413 do referido Codex (transcrito alhures), a redução da cláusula penal pelo magistrado deixou de traduzir uma faculdade restrita às hipóteses de cumprimento parcial da obrigação (artigo 924 do Código Civil de 1916) e passou a consubstanciar um poder/dever de coibir os excessos e os abusos que venham a colocar o devedor em situação de inferioridade desarrazoada. Superou-se, assim, o princípio da imutabilidade absoluta da pena estabelecida livremente entre as partes, que, à luz do código revogado, somente era mitigado em caso de inexecução parcial da obrigação. O controle judicial da cláusula penal abusiva exsurgiu, portanto, como norma de ordem pública, objetivando a concretização do princípio da equidade - mediante a preservação da equivalência material do pacto - e a imposição do paradigma da eticidade aos negócios jurídicos. Nessa perspectiva, uma vez constatado o caráter manifestamente excessivo da pena contratada, deverá o magistrado, independentemente de requerimento do devedor, proceder à sua redução, a fim de fazer o ajuste necessário para que se alcance montante razoável, o qual, malgrado seu conteúdo sancionatório, não poderá resultar em vedado enriquecimento sem causa. Por sua vez, em havendo o cumprimento parcial da obrigação, deverá o juiz, à luz do princípio da equidade, verificar se o caso reclamará ou não a redução da cláusula penal fixada, afigurando-se razoável evitar situação em que o adimplemento inferior ao contratado revele-se mais vantajoso que sua satisfação integral" E, mais adiante, pontuou: o caso enquadra aplicação do "Enunciado 357 da IV Jornada, segundo o qual: Enunciado 357: O art. 413 do Código Civil é o que complementa o art. 4º da Lei n. 8.245/91"

[vii] Código Civil: "Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução. Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos."

[viii] Código Civil: "Art. 409. A cláusula penal estipulada conjuntamente com a obrigação, ou em ato posterior, pode referir-se à inexecução completa da obrigação, à de alguma cláusula especial ou simplesmente à mora."

[ix] Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação 9174031-31.2009.8.26.0000, julgamento 16/4/2012: "Por outro lado, como bem assinalado pelo magistrado de primeiro grau, a cláusula penal revela-se excessiva e abusiva. Trata-se matéria de ordem pública, que pode e deve ser conhecida a qualquer tempo e grau de jurisdição. O artigo 413, do atual Código Civil (correspondente ao art. 924, do CC de 1916), dispõe que a cláusula penal deve ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio. No caso vertente, a multa de R$ 118.800,00, estabelecida na cláusula 21ª do instrumento, é superior até mesmo ao débito principal (R$ 116.919,00), em ofensa ao disposto no art. 412, do CC, sendo certo que o adimplemento ocorreu com atraso de apenas 24 dias. Evidente, portanto, que a manutenção da multa no patamar ajustado implicaria enriquecimento sem causa do exequente, em ofensa aos princípios da boa-fé e da função social do contrato."

[x] Código Civil: "Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários."

[xi] Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação 1109772-37.2021.8.26.0100, julgamento 22/02/2024: "Logo, a multa deve ser reduzida a 10% do valor da taxa inicial da franquia de R$60.000,00 (sessenta mil reais) (cláusula 3.1 fl. 97), conforme autoriza o artigo 413 do Código Civil, também em analogia ao que prevê a Lei de Usura, evitando-se o enriquecimento ilícito da embargada, o que é vedado pelo artigo 884, do Código Civil."

[xii] Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação Cível 1009654-84.2020.8.26.0004, julgamento 4/07/2023: "Obrigação de fazer imposta pela cláusula terceira do distrato no sentido de alterar endereço no CNPJ, sob pena de mula de R$ 1.000,00 por dia de descumprimento - Ausência de fixação de um "teto" a conduzir a multa ao valor exorbitante - Abusividade - Necessidade de atribuição de um limite, utilizando o percentual de 10% do valor da dívida confessa - Possibilidade de redução das penalidades com base no artigo 413 e 884 do Código Civil."



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