• Cuiabá, 21 de Novembro - 00:00:00

Nuvens de Fumaça

A conversa corria solta naquela manhã, ainda sem brilho devido às nuvens de fumaça que cobria parte da cidade. Isso desde muito cedo. Quatro conhecidos falavam de um tudo. Amigos de longa data. Há muito não se viam, mas em momento algum deixaram de se falar. Valiam-se do whatsapp para romper o bloqueio da pandemia. Também para deixarem a “fofoca em dia”.

As orelhas da Gertrude, coitada, por certo, ficavam “quentes” e “vermelhas” todas as vezes que eles se pegavam a futricar-se, ainda que do ponto de vista da ciência, os tais sintomas têm como causa a dilatação natural dos vasos sanguíneos, permitindo maior passagem de sangue, e, por conta disso, a cor avermelhada e a sensação de “calor”. Só risadas. Riam, mas, logo, desfaziam os sorrisos, tornando-os rapidamente circunspetos, embora o assunto tratado estivesse mais para a pilhéria.  

Lá vem você... De novo com política” – antecipou-se Pedro, sem esconder seu desapontamento. “Precisamos...” – tentava se justificar Miguel. “As candidaturas estão postas, e a campanha está a todo vapor” – observou-se Augusto, meio professoral. “Nem, por isso, necessitamos nos ocupar com a eleição...” – retrucou-se Pedro, inconformado. “Tenho opinião diferente da sua, meu caro...” – confessou-se Miguel. “Ainda bem que temos...” – balbuciou o Zeca. “Disse-o bem, Zeca” – respondeu Augusto. “Não se chateie, Pedro... Não há razão para tal” – pedia-lhe Miguel. “Como não!...” – esbravejou-se Pedro. “Cada um tem o direito a opinar, e as opiniões diferentes são necessárias, meu caro” – ponderou Miguel. “Além dos diferentes pontos de vista, precisamos discutir sobre as propostas dos candidatos” – falou o Zeca. “Propostas!... Onde elas se encontram?” – quisera saber Augusto, não escondendo a ironia. “Elas estão nas falas dos candidatos, e cada postulante a cadeira de prefeito registrou seu plano de governo na Justiça Eleitoral” – afirmou Miguel. “Já acessei o site da Justiça, baixei os planos, e analisei um a um...” – dizia Augusto. “Meu caro, pareces desapontado?” – questionou-lhe Pedro. “Nada disso... Abri-os, mesmo sabendo do que iria encontrar...” – respondeu-lhe Augusto. “Então?” – provocou o Pedro. “Encontrei o que já era esperado, ou seja, nada de proposta, nada de projetos, nada de nada, apenas um rosário de promessas, sem quaisquer garantias que serão cumpridas” – explicou Augusto. “Você não deve ter visto o plano de meu candidato...” – duvidava Pedro. “Seu candidato?” – questionou Augusto. “Sim...” – respondeu secamente o Pedro. “Ah!...” – balbuciou Miguel. “O plano de seu candidato, meu caro, foi o primeiro que eu analisei... Ele é igualzinho aos outros, inclusive nos achismos e nas aberrações, talvez bem mais, pois conta com o maior número de páginas” – caçoava Augusto. “Contra o C, contra o V” – arrematou Miguel. “Nada disso, Miguel, o próprio candidato, ajudado pelo vice, que o elaborou” – afirmou Augusto, sarcasticamente. “Por que não foi o seu partido a elaborá-lo?” – voltava à carga o Miguel, em meio a sorrisos. “Porque o candidato é da nova política...” – antecipou-se Augusto. “Nova o quê?...” – indagou Miguel. “Nova política, onde as pessoas estão em primeiro plano” – intercedeu-se Pedro.

 “Diga-me, Pedro, quando, na história do país, o partido foi protagonista na luta política-eleitoral?”- questionava Miguel. “Sempre, e na vigência da velha política...” – observou Pedro. “Poupe-nos, caro amigo... Não nos ache idiotas” – pediu-lhe duramente Miguel. “Pá de cal na política tradicional...” – retrucou Pedro, no instante em que enviava o retrato de seu candidato, lado a lado com o presidente. “É um ator, meu caro... Enganou-nos... Jamais imaginamos vê-lo transformado em um torcedor...” – registrou Augusto. Pedro sorriu. “Nada lhe valeu a formação acadêmica, nem as nossas conversas sobre os mais variados assuntos” – ponderou Miguel. “A condição de torcedor retira-lhe o poder da reflexão, do raciocínio e da crítica” – complementou Augusto. “Torna-o prisioneiro da falácia, da mentira e da falsidade” – prosseguiu Miguel, enquanto Pedro continuava a sorrir. “Não sorria, tente perceber a gravidade da situação” – recomendou-lhe Augusto. “Situação gravíssima” – concluiu o Zeca. Ainda eram bastante fortes as nuvens de fumaça. É isto.

 

Lourembergue Alves é professor universitário e analista político.



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