• Cuiabá, 28 de Setembro - 00:00:00

O Imponderável

Àquela hora da manhã, a praça central da cidade já contava com um bom número de pessoas. Algumas delas estavam sentadas, outras tantas permaneciam em pé e um terceiro grupo, contentava-se em caminhar de um lado para outro. Nenhum deles deixava de admirar a beleza primaveril estampada na face de cada uma das rosas, no brilho das folhas, nas flores amareladas do único pau-brasil e sentir o cheiro da grama molhada. Conversas rolavam. Falavam de um tudo. Riam das anedotas contadas, ainda que repetidas, sobre personagens políticos, agentes públicos e serventuários da Justiça.

Talvez, por isso, não notaram que eram observados. Observados de longe. O professor Luiz era um velho conhecido. Frequentador assíduo da praça. Obstinado, meticuloso e sistemático. Nada lhe escapava do olhar, ruído algum lhe passava em branco, a exemplo de Sherlock Homes. Ainda que, por vezes, parecia preso as prateleiras do pretérito, ora com as vistas em linha reta davam de cara com a imponente Igreja ora, à direita, rumo ao lugar onde, décadas atrás, existia o cinema, local de encontro e reencontro, quase como extensão do antigo largo, em que temporariamente parques e circos eram assentados.

Com o correr dos anos, as pegadas se desfizeram, e a gurizada da época se tornou gente grande, virou-se pais, avós, contudo, jamais se lembrou de revisitar o velho sótão, mesmo que tenha ao alcance as velhas fotografias em preto e branco, disponibilizadas nas redes sociais, porém desacompanhadas do perfume hortelã de antigas paragens. Ainda que, por certo, os pedestres de hoje sejam os mesmo que, no passado, dividiam iguais lugares. Riam, gargalhavam por razões outras.

O professor sorriu. Sorria, enquanto seus ouvidos captavam as piadas do momento, os novos clichês. Nada lhe soava estranho. Nem o passarem por especialistas de coisas que, de verdade, as desconheciam por completo. Mas não estavam nem aí. Opinavam, falavam sem parar e chegavam a criticar os verdadeiros conhecedores, ainda que estes tenham passados anos dedicados a suas especialidades, e eles nenhum livro pegou para ler.

Receitavam remédios para combater o Covid-19, sem serem médicos; manifestavam-se contra juízes e ministros dos tribunais, ainda que não tivessem deixados os próprios olhos escorregarem sobre uma linha sequer da decisão; reclamavam de parte da imprensa só porque esta veiculou noticia que desagradava o governante, pelo qual tinham verdadeira fascinação; esbravejavam, ameaçavam e atacavam quem ousassem ter posição diferenciada das suas; recusavam-se a aceitar os fatos, os quais lhes eram sem relevâncias, certamente porque os tais fatos derrubavam seus achismos, suas falas fantasiosas, além de deixarem em desequilíbrio a condição que lhes fora destinada, a de torcedores.

Torciam e torcem. Saiam de taco de beisebol em passeatas, escoltados por uma polícia engajada, com palavreados chulos, agressões verbais e ameaça a quem lhes postavam a frente. Moviam pelas ondas da paixão, e não por uma causa comunitária ou da nação ou para a realização de um sonho patriótico, mas por alguém, cuja motivação não se diferencia em comportamento de outrem, pois continua focado nos amigos e na própria família, com o fim de afastá-la do perigo do redemoinho bravio que, tudo indica, parece querer levar de roldão a árvore que se soltou da terra por conta da erosão ocasionada por força humana, não por distúrbio da natureza, que continua firme, a despeito da passagem da boiada anunciada por alguém em certa ocasião, cujos roncos destruíram as curvas de nível. Tudo se perdia. O professor levou a mão à cabeça. Quem sabe desapontado. Embora soubesse que ele coisa alguma poderia fazer, a não ser esperar, talvez pelo imponderável. É isto.

 

Lourembergue Alves é professor universitário e analista político. E-mail: lou.alves@uol.com.br



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