Samuel Hanan
Durante a recente reunião dos chefes de estado dos países do G20, realizada no Rio de Janeiro, o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, em seu pronunciamento como líder político do país anfitrião do encontro, chamou a atenção de todas as nações para o legado do G20 nos últimos 16 anos.
Lula afirmou, baseado em sua experiência pessoal, que no período entre 2008 (durante seu segundo mandato) e 2024, o mundo tornou-se pior, com pobreza, miséria, fome, desigualdades gritantes, gerras e conflitos entre nações, com milhares de vítimas, inclusive civis.
Destacou o presidente brasileiro que os países do G20 são responsáveis por 85% do PIB mundial, gerando US$ 90 trilhões/ ano, por 75% do comércio mundial e por 67% da população mundial, com seus 5,42 bilhões de habitantes.
Tão decepcionante quanto preocupante é o fato de o grupo das 20 nações mais ricas do planeta, com tamanha expressividade, ter produzido, nos últimos 16 anos, uma realidade global conflituosa e desigual, deixando pior o que deveria ser melhorado.
Conveniente recordar que o G20 estabelece como principais objetivos debater problemas econômicos e financeiros de alcance global, como crises financeiras; crescimento econômico sustentável; comércio internacional; inflação e emprego; políticas de combate à fome; zelar pelo meio ambiente, evitando crises e desastres climáticos; promover o desenvolvimento sustentável e estreitamento, via diálogo das relações entre países visando também evitar reduzir as guerras e seus impactos, e o combate global à corrupção, praga que vem destruindo muitos países.
Sua carta de propósitos é de um apelo extraordinário para a busca de apoio e consensos nas teses e objetivos desse fórum informal voltado à promoção do debate aberto e construtivo entre países.
Da reunião no Rio de Janeiro resultou a assinatura, pelos países do G20, de um documento de priorização de combate à fome, à miséria e à pobreza, e de cooperação mundial para a preservação das florestas em pé e de cuidados com a biodiversidade. Entretanto, é preciso passar do discurso à prática.
É necessário que os governos do G20 realizem estudos para dimensionar os recursos financeiros necessários para colocar em prática as prioridades globais definidas no encontro no Brasil, tornando realidade os programas de intenções consensuais. Caso contrário, as ações globais não alcançarão concretude e poderá se repetir o fracasso dos últimos 16 anos. O passado é importante para a reflexão, não para a repetição.
Por outro lado, os países emergentes e os que ascenderam à posição de expressividade política e econômica também reivindicam a revisão dos organismos internacionais com maior democratização, eliminação de vetos, e ampliação do multilateralismo. No entanto, tudo isso deveria vir acompanhado da proposição de aumentar as participações proporcionais de responsabilidade global. Estamos falando de custos a serem absorvidos por todos. Não funciona a equação de direitos para um lado e obrigações para outro.
É fundamental também que muitos dos governantes façam uma profunda reflexão do que ocorreu em seus próprios países. Isso vale inclusive para o Brasil. Nos últimos 16 anos – citados pelo presidente no G20 – e em um período mais amplo – de 2003 a 2024 -, o país foi governado por um mesmo partido em 60% e 70% do tempo, respectivamente. E os resultados merecem uma análise interna.
Nesses 22 anos, o Brasil caiu da 77ª para a 89ª posição no ranking da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), calculado com base em educação, renda e saúde.
No coeficinte Gini, instrumento usado mundialmente para medir grau de concentração de renda e apontar a diferença entre rendimentos dos mais pobres e mais ricos, o Brasil permanece na 149ª posição entre 181 países, ao lado do Congo e ligeiramente inferior à Guatemala.
A concentração de renda também é problema crônico. Relatório da Oxfan divulgado em janeiro de 2024 mostra que, no Brasil, os 1% mais ricos detêm 63% das ri?uezas nacionais, enquanto os 50% mais pobres detêm apenas de 2% a 3% do patrimônio do país. O mesmo estudo aponta que 27% dos ativos financeiros da nação estão nas mãos de 0,01% da população brasileira.
A desigualdade nacional, segundo o relatório, é ainda mais gritante. Revela que a renda média dos brancos está mais de 70% acima da renda da população negra. Ou seja, o Brasil está mais perto de uma plutocracia do que de uma democracia.
A estratificação de renda indicada um cenário triste e preocupante: 90% da população brasileira ganha menos de R$ 3.500, considerando-se que do valor bruto de R$ 3.600,00/mês são deduzidos Previdência Social e Imposto de Renda, no total de 17%, fazendo com que a remuneração líquida se reduza a R$ 2.890,00. Outro dado estarrecedor: mais de 30% da população tem remuneração mensal de até um salário-mínimo (R$ 1.412,00). Nesse grupo estão mais de 70% dos aposentados pelo INSS, que somam cerca de 24 milhões de pessoas. Outros 4,7 milhões de brasileiros recebem o mesmo valor pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC).
O país também tira nota vermelha na educação. Entre os 56 países avaliados pelo Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) em 2024 - os 38 membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e mais 16 nações convidadas -, o Brasil figurou na desonrosa 44ª posição.
Há ainda outros problemas graves, como a corrupção. De acordo com a Transparência Internacional, nos últimos 22 anos o Brasil caiu da 69ª para a 104ª posição no índice de percepção da corrupção. Significa dizer que existem 103 países com setor público mais honesto que o Brasil, onde, segundo estimativas de R$ 200 bilhões a R$ 250 bilhões são desviados anualmente dos cofres públicos, recursos que poderiam ser investidos em setores fundamentais para a população como educação, saúde, habitação, infraestrutura e segurança pública.
Não é apenas uma questão retórica. A violência urbana mostra-se incontrolável, com o avanço das facções criminosas e do tráfico de drogas, e o incrível número de 45 mil homicídios registrados a cada ano, o que faz do Brasil, em números absolutos, o número 1 do mundo nessa macabra estatística.
O combate à pobreza, tema abordado com muita ênfase na reunião do G20, merece mesmo especial atenção global. Na Índia, o país mais populoso do mundo, a pobreza e extrema pobreza afetam 234 milhões de pessoas, cerca de 17% a 19% de seus habitantes. Na Rússia, o mesmo problema castiga 13 milhões de pessoas, o correspondente a 9% da população, conforme estimativa feita pelo próprio presidente Vladimir Putin, em fevereiro de 2024, conforme divulgou a Agência de Notícias ETE. A meta do governo russo de zerar pobreza em 2024 foi adiada para 2030. E, na África do Sul, mesmo após 30 anos do fim do apartheid, o nível de pobreza da população praticamente não diminuiu.
O bom exemplo vem da China. No segundo país mais populoso do planeta, a pobreza atingia 98% da população em 1981. Em 2023, a extrema pobreza havia sido reduzida a zero e menos de 1% dos chineses estavam na linha da pobreza.
No Brasil, entretanto, a pobreza e a miséria ainda são fantasmas a desafiar os governos. Entre os países do G20, perde apenas para a Índia em percentual de pessoas pobres. (O Globo, 09/04/2024). Em 2008, o país tinha 25,3% da população em situação de pobreza e 8,8% em situação de extrema pobreza. Passados 15 anos, pouca coisa mudou, pois um terço da população ainda vive na pobreza: são 27,5% dos brasileiros pobres e 5,8% em extrema pobreza.
Optou-se por uma política de assistencialismo, com programas como o Bolsa Família, BCP, vale-gás e outros que, embora ajude a aliviar a insegurança alimentar, não tira ninguém da pobreza nem devolve a dignidade aos chefes de família.
Não é por acaso que o fenômeno da favelização se acentua no país. Hoje temos 16,4 milhões de brasileiros (7,7% da população) vivendo em favelas, a maioria com serviços de água e saneamento básico inexistentes ou precaríssimos em pleno século XXI, apesar de o Brasil ocupar a 8ª posição no ranking das maiores economias do mundo. É o retrato do fracaso das políticas públicas em todas as áreas relevantes à dignidade humana.
Por isso, é incompreensível que no âmbito do Ministério da Fazenda técnicos estejam propondo alterações nas fórmulas dos cálculos dos reajustes do salário-mínimo que, se aprovados, implicarão na perda de R$ 6,00/mês na renda do brasileiro pobre. Serão cinco ou seis pães a menos na mesa do trabalhador, do aposentado e dos 4,7 milhões de idosos beneficiários do BPC.
Essa proposta, eivada de incompetência e insensibilidade dos burocratas, chega a soar como deboche em um país que concede renúncias fiscais que somam mais de 5% do PIB, algo em torno de R$ 565 bilhões por ano. São gastos tributários da União, a maioria sem prazo para acabar, sem reduções ao longo do tempo, sem aferições quanto à correta aplicação, e que não têm como objetivo a redução das desigualdades sociais e regionais, ao contrário do que prevê a Constituição.
Os dados oficiais mostram que não faltam recursos para a solução. Recursos existem, porém falta vontade política para revertê-los em políticas públicas de qualidade em favor da maioria da população que não detém liberdade econômica e tampouco liberdade política e de expressão, porque estas não existem sem a primeira.
Não há perspectiva dessa realidade ser transformada se os governos não mudarem a forma de ver o mundo. Sobre isso já alertava o físico alemão Albert Einstein (1879-1955) que afirmou: "Insanidade, é continuar fazendo a mesma coisa e esperar resultados diferentes". Ou, trazendo para o solo pátrio, o pensamento da escritora Lya Luft (1938-2021): "Não é triste mudar de ideia, triste é não ter ideia para mudar".
A análise da performance dos governos dos últimos 22 anos, não deixa dúvida de que é inadiável a elaboração de um projeto a favor do Brasil, um plano que precisará ser abraçado pela sociedade (hoje dividida) e pelas redes de comunicação, sem o que o país não conseguirá melhorar seus vergonhosos índices de desenvolvimento humano.
O maior legado do G20 no Brasil terá sido, quem sabe, a transformação dos discursos em prática porque somente isso poderá garantir concretude ao sonho de uma vida melhor para os mais pobres, ao desenvolvimento sustentável e duradouro, sem fome, menos violento, e garantidor da dignidade humana.
*Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros "Brasil, um país à deriva" e "Caminhos para um país sem rumo". Site: https://samuelhanan.com.br
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