Na última semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou o veto ao PL 2621/2023, que previa que o SUS distribuísse gratuitamente o cordão de fita com desenho de girassóis, símbolo internacional de identificação de pessoas com deficiências não visíveis externamente. Não é um detalhe burocrático. Na minha avaliação, este veto suspende a possibilidade de que milhões de brasileiros com deficiências ocultas tenham acesso a um instrumento simples, acessível e simbólico para facilitar o acolhimento e o reconhecimento de seus direitos.
Como advogada, médica e pessoa com deficiência oculta, vejo esse veto como uma negação concreta à dignidade, à visibilidade e à inclusão de quem vive com limitações que não aparecem à primeira vista. Deficiências invisíveis não deixam de ser deficiências. O fato de não serem imediatamente perceptíveis não torna o sofrimento menor, apenas o torna menos reconhecido social e institucionalmente.
Há motivos objetivos e consistentes para que o SUS distribua o cordão dos girassóis. Em primeiro lugar, trata-se de uma forma humanizada e digna de identificação. Muitas condições não se manifestam de forma visível, como Transtorno do Espectro Autista (TEA), Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), epilepsia, transtornos de ansiedade, depressão, surdez, deficiências intelectuais, doenças crônicas como fibromialgia, entre tantas outras. O cordão permitiria que essas pessoas sinalizassem sua condição de maneira discreta, respeitosa e padronizada, sem se submeter à humilhação de ter que "provar" o próprio sofrimento a cada atendimento, fila ou abordagem.
Outro ponto fundamental é a possibilidade de regulamentar e controlar o uso. Quando o cordão é distribuído de maneira oficial pelo SUS, atrelado a registro, identificação nominal ou vinculado à ficha de saúde, o risco de uso indevido ou fraudulento diminui. O que hoje é um artefato informal, comprado em sites ou obtido de forma isolada, passa a ter valor institucional, reconhecido por profissionais de saúde, servidores públicos e pela sociedade em geral. Ou seja, o Estado não apenas legitima o símbolo, como assume responsabilidade sobre sua correta utilização.
Defendo também que a distribuição sistemática do cordão via SUS teria um impacto estratégico na produção de dados e no mapeamento real das deficiências ocultas no Brasil. Saber quantas pessoas convivem com essas condições, quais são as mais prevalentes e quais seguem negligenciadas é fundamental para a formulação de políticas públicas efetivas. A partir desses dados, seria possível planejar melhor serviços de saúde mental, programas de reabilitação, ações de educação inclusiva, adaptações no transporte, no trabalho e em espaços públicos. Sem informação, o Estado segue planejando "no escuro" e perpetuando invisibilidades.
Ao incluir no escopo do cordão condições mais comuns, como TEA, TDAH, depressão, ansiedade, epilepsia, surdez leve, e também outras mais raras ou menos conhecidas, como fibromialgia, doenças neurológicas crônicas, deficiências intelectuais moderadas, doenças autoimunes e doenças raras com impacto cognitivo ou físico, o Estado teria um retrato mais fiel da diversidade invisível do país. Isso permitiria planejar a assistência de maneira muito mais eficaz, em vez de tratar essas pessoas como exceções isoladas que "não cabem" nas políticas gerais.
Existe ainda o eixo da equidade e da inclusão social. Quando o acesso ao cordão depende exclusivamente de renda, informação ou privilégio, o que se produz é mais exclusão. Hoje, quem tem dinheiro, tempo e informação compra o cordão. Quem não tem, permanece invisível. Ao transformar o cordão dos girassóis em um direito assegurado pelo Estado, por meio do SUS, afirmamos na prática o princípio da igualdade: reconhecemos que deficiência não é sinônimo de cadeira de rodas ou próteses visíveis. Há um mundo de limitações que se expressam no corpo, na mente e nas relações sem qualquer marca aparente.
Para quem vive com uma deficiência oculta, o cotidiano costuma ser um campo minado de desafios silenciosos: sensibilidades sensoriais, crises epilépticas, necessidade de pausas ou adaptações, cansaço crônico, flutuações de humor, ansiedade intensa, dificuldades de aprendizado ou de comunicação. Um simples cordão pode sinalizar a profissionais de saúde, atendentes, educadores, empregadores e à sociedade em geral que aquela pessoa precisa de um olhar atento, de tempo, de compreensão, de ajustes. Não é pedir privilégio, é exigir respeito.
Por tudo isso, entendo que o veto fere o espírito de um SUS inclusivo. O SUS nasceu com o princípio da universalidade e da integralidade do cuidado: oferecer atenção à saúde sem discriminação, com dignidade. Estamos falando de um símbolo simples, barato, de impacto social elevado e custo administrativo reduzido quando distribuído em massa. Não se trata de um luxo, mas de uma ferramenta concreta de inclusão.
Ao vetar a proposta, o presidente Lula desconsidera, na prática, a urgência de dar visibilidade a uma parcela significativa da população brasileira: pessoas que, por terem deficiências ocultas, sofrem em silêncio, sem amparo institucional adequado ou reconhecimento social pleno. Vejo nesse gesto mais um recuo civilizatório, um retrocesso na luta pela inclusão, pela justiça social e pelo direito básico de existir sem ser julgado pela aparência.
Por isso, faço um apelo direto aos parlamentares: é preciso derrubar esse veto e avançar nas políticas públicas de inclusão. Não se trata de oposição cega ao governo, mas de compromisso coerente com a Constituição, com os direitos humanos e com as pessoas que dependem do SUS para existir com dignidade.
A todos os deputados federais e senadores, deixo meu chamado: reavaliem com urgência a decisão de manter o veto ao PL 2621/2023. A população com deficiências ocultas espera e merece ser reconhecida não como objeto de benevolência, mas como sujeito de direitos, como cidadãs e cidadãos plenos.
A derrubada do veto seria um gesto concreto de compromisso com a dignidade da pessoa humana e com a construção de um Brasil mais inclusivo e mais justo. Que o SUS, símbolo maior da saúde pública e da universalidade, assuma de vez seu papel na promoção da diversidade, da equidade e do cuidado integral.
A hora é agora. Não deixemos que um símbolo simples, mas poderoso, permaneça fora do alcance de quem mais precisa.
Dra. Débora Pacheco Quidá é Advogada e Médica - Deficiente oculta, portadora de esclerose sistêmica.


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