• Cuiabá, 16 de Abril - 00:00:00

"Pesquisas mostram que 71% das mulheres não denunciam seus agressores", alerta Sirlei Theis


Foto: Reportermt  - Foto: Foto: Reportermt Sirlei Theis, advogada e ex-vítima de violência doméstica. Foto: Reportermt
Sonia Fiori – Da Editoria

O cenário não poderia ser mais cruel. Os números sobre mulheres vítimas de violência na esteira do chamado feminicídio no Estado, não deixam dúvidas sobre a precariedade das políticas públicas que visam combater esse quadro.

Em recente audiência pública, promovida na Assembleia Legislativa, foram considerados os dados de 2017 das secretarias de Segurança Pública que "colocam Mato Grosso como quarto estado com o maior número de casos de feminicídio. Trata-se do assassinato em razão do gênero da vítima, comumente de autoria de homens conhecidos pela vítima, familiares ou companheiros. Mato Grosso registrou 76 casos de feminicídio em 2017, um aumento de 55% em relação ao ano anterior, quando o número desse tipo de crime foi de 49. Ainda segundo a Secretaria de Segurança Pública, de janeiro a outubro de 2018 o número de mulheres mortas em crimes de feminicídio é de 66".

A efetiva aplicação da legislação, o contexto de insegurança, as ações preventivas e mecanismos para tentar minimizar a dramática falta de real amparo às mulheres, é comentado nesta Entrevista da Semana ao FocoCidade pela advogada, militante política, ativista da causa e ex-vítima de violência doméstica, Sirlei Theis.

Sirlei, que superou como poucas as aflições de um passado tenebroso, de convívio diário com o horror da violência, descreve com riqueza de detalhes o transcorrer de uma batalha, e em que pese os enfrentamentos, que precisa ser revigorada com novas armas buscando a vitória sobre uma verdadeira “guerra” travada contra agressores que parecem simplesmente ignorar a lógica do respeito aos direitos constitucionais e o pior, à vida.

É nesse campo que o esperado amparo de Estado ainda engatinha. “A regra é que nos casos em que as vítimas denunciam seus agressores e recebem uma medida protetiva voltam para suas casas com um papel na mão, que na prática não garante o afastamento dos agressores. Posso citar que menos de 3% dos municípios do Brasil possuem casa de apoio para abrigar mulheres com medidas protetivas e a Patrulha que é um serviço que produz uma sensação maior de segurança para a vítima é ainda menor”, alerta Sirlei Theis.

Outro aspecto de alerta se refere, como pontua a advogada, acerca do maior obstáculo à punição: o medo. “Tudo isso retrata o porque as pesquisas mostram que 71% das mulheres não denunciam seus agressores e eu posso afirmar, que nesse número alarmante estão os casos mais graves de violência, pois o ‘medo’ do agressor somado às falhas do sistema impedem a vítima de denunciar”.

E nesse sentido, se faz essencial o apoio da família. “Pesquisas mostram que uma criança não nasce violenta, mas o ambiente em que ela cresce é que a transforma em um agressor. Desta forma, a ausência de políticas preventivas não está aumentando somente a violência doméstica, mas todo e qualquer tipo de violência. Por isso, se um Estado de fato quer combater a violência, precisa começar por aquele crime que desestrutura a família”.

Vale lembrar que o Tribunal de Justiça (TJ) acentua: "hoje os crimes que envolvem a Lei de Violência Doméstica são definidos no Código Penal mas eles têm a perspectiva da vulnerabilidade da mulher vítima, como no caso de lesão corporal. Se for praticado contra a mulher, pelo fato dela ser mulher, na condição de vítima de violência doméstica ou familiar, o crime passa a ter a perspectiva da Lei Maria da Penha".

Confira a entrevista na íntegra:

Por que, e levando em consideração todos os avanços como a Lei Maria da Penha, vivemos um cenário em que os crimes contra as mulheres ocorrem com frequência?

A lei Maria da Penha foi um grande avanço na proteção e defesa dos direitos das mulheres brasileiras. A violência Doméstica no Brasil até a publicação da Lei nº 11.340/2006, era um crime praticamente invisível aos olhos da sociedade. Hoje 100% dos brasileiros conhecem ou já ouviram falar da Lei, embora o conteúdo da Lei é desconhecido pela maioria das pessoas. É reconhecida em todo mundo como uma das legislações mais avançadas na defesa das mulheres vítimas de violência doméstica, principalmente por prever políticas que visam coibir, punir, prevenir, repreender e promover os direitos da mulher, por meio de trabalho que busque a transversalidade das ações entre o Executivo, Legislativo e Judiciário, buscando a integração entre as áreas de segurança pública, assistência social, educação, saúde, habitação e trabalho. No entanto, o que observamos é que essa transversalidade das ações ainda não existe no Brasil e não dá, por exemplo, para combater a violência doméstica em um país que traz nas suas raízes a cultura do machismo, se não investir na educação.Temos uma legislação rica, mas enquanto o poder público não entender que a prevenção é a melhor forma de combate à violência contra a mulher, nada vai mudar.

O Estado é falho na garantia da segurança às mulheres que buscam proteção?

Com certeza. Depois da publicação da Lei Maria da Penha inúmeras campanhas são lançadas orientando as mulheres e a sociedade sobre a violência contra a mulher, sobre os diversos tipos de violência e da importância de se “denunciar”, contudo o Poder Público não está preparado para garantir a segurança dessas mulheres. A regra é que nos casos em que as vítimas denunciam seus agressores e recebem uma medida protetiva voltam para suas casas com um papel na mão, que na prática não garante o afastamento dos agressores. Posso citar que menos de 3% dos municípios do Brasil possuem casa de apoio para abrigar mulheres com medidas protetivas e a Patrulha que é um serviço que produz uma sensação maior de segurança para a vítima é ainda menor. Tudo isso retrata o porque as pesquisas mostram que 71% das mulheres não denunciam seus agressores e eu posso afirmar, que nesse número alarmante estão os casos mais graves de violência, pois o “medo” do agressor somado às falhas do sistema impedem a vítima de denunciar.

Um exemplo sobre esse contexto se aplicaria à servidora pública em Sinop, assassinada mesmo após ter buscado auxílio do Estado?

Exatamente. Aí quando vem à tona casos como esse da Marta, servidora pública de Sinop, que foi assassinada em casa, estando com medida protetiva, cria um desespero em muitas mulheres que estão vivendo situações semelhantes. 

Esse seria um dos motivos que barram a iniciativa de mulheres de buscar as autoridades competentes e denunciar o agressor?

Com certeza. Posso citar o meu caso - uma relação abusiva e extremamente agressiva que tive no período de 1998 a 2007, embora à época eu fosse uma pessoa instruída não tive coragem de denunciar. A primeira surra que levei foi com uma mão de pilão, fiquei roxa dos pés a cabeça. Ele só não me matou naquele dia porque eu estava dentro da casa dos pais dele, que me socorreram.  Sofri todos os tipos de violência com aquele homem e só consegui me libertar dele definitivamente quando passei num concurso público e fui trabalhar na Secretaria de Estado de Segurança Pública. A partir daquele momento meu chefe era um delegado da Polícia Federal, minhas amigas e amigos eram policiais. Eu tinha telefone direto deles e o meu agressor sabia muito bem disso. Somente nesse momento me senti segura o suficiente para por um fim aquela relação agressiva. E diante dos casos que chegam até a mim nas localidades em que vou ministrar minha palestra, e também através da fanpage, posso afirmar que as mulheres que não denunciam geralmente são aquelas que sofrem as agressões mais graves e isso acontece exatamente porque elas não acreditam no sistema de segurança. Ainda consideram que é mais seguro continuar com o agressor do que denunciar e perder a vida.

De uma forma geral, a política de segurança pública do Estado está alinhada às ações à proteção efetiva de mulheres vítimas de violência?

O Estado de Mato Grosso deixa muito a desejar. Nós verificamos o esforço individual de Delegados, Defensores públicos, Promotores de Justiça, Juízes, Conselhos da Mulher, dentre outras entidades e municípios, mas falta o apoio de quem realmente tem o poder de direcionar recurso para mudar essa realidade. O Estado de Mato Grosso com 141 municípios tem apenas sete Delegacias Especializadas da Mulher e funcionam em horário de expediente porque não existe efetivo suficiente para funcionar em regime de plantão, ou seja, estar aberta para atender a mulher 24 horas. Tem apenas um município que tem a rede completa de atendimento à mulher, incluindo a patrulha, que é Barra do Garças. Cuiabá e Várzea Grande começaram em outubro de 2018 com o projeto piloto da Patrulha. Desta forma, o Estado de Mato Grosso precisa sair da inércia e buscar implementar políticas eficientes que apoiem a mulher vítima de violência e criam condições adequadas de atendimento.

A Justiça célere é fundamental para o desfecho de casos em que o agressor ou criminoso seja punido. Então, a questão de “tempo para julgamento” pode significar vidas?  

A justiça realmente precisa ser mais célere. Como são poucos os casos em que o agressor vai preso, causa na vítima muitas vezes a sensação de impunidade. Na realidade as penas no Brasil precisam ser revistas. Acontecem algumas coisas que realmente são muito injustas, mas para esclarecer melhor vou dar um exemplo. Muitas vítimas precisam deixar tudo para trás para garantir sua vida, em razão da gravidade da situação que vive e como no caso da Marta, o inconformismo do parceiro com o fim do relacionamento. Em alguns casos, elas precisam deixar o emprego, amigos, família e fugir, ir embora para outra cidade e muitas vezes para outro Estado, pois só assim estará segura, enquanto que ele fica solto e livre, perto da família, dos amigos e no conforto da casa. Isso acontece muito no Brasil e era o que a Marta ia fazer, já tinha pedido licença prêmio e férias para ir embora, mas no caso dela não deu tempo.

Qual o papel da família nesse processo?

O papel da família é essencial e dos amigos também. A vítima precisa do apoio de todos, pois está muito doente. A violência doméstica não é um problema da mulher é um problema da família. Toda vítima de violência doméstica tem um pai e tenho certeza que nenhum pai gostaria de saber que sua filha está num relacionamento abusivo. Por isso, ainda ressalto que os pais precisam ficar atentos ao comportamento das adolescentes, que muitos desses relacionamentos agressivos começam nessa idade.  Elas começam a se isolar, se afastar dos amigos, não fazer nada se não tiver com ele, mudam a forma de se vestir etc. O índice de mulheres jovens em relacionamentos agressivos tem crescido bastante e também de acordo com as pesquisas são as que menos denunciam e sequer falam com a família e amigos.

Como descreve o sentimento por ter sido vítima de violência doméstica, desde a superação à sua militância nessa causa?

O meu sentimento é exatamente esse: superação! Inclusive, a minha palestra leva o nome “Supera-se”, pois é esse sentimento que procuro levar para as mulheres que vivem em um relacionamento agressivo. O de que há vida após a violência e que se essa mulher que quando ouvia um elogio era: “você não vai passar de uma boa dona de casa”, e conseguiu vencer profissionalmente e construir uma nova família ao lado de um homem que me apoia em tudo, então elas também podem.

Você também atua na política. Há um real empenho dos representantes políticos, especialmente no Estado, sobre a defesa da mulher?

Eu, na realidade comecei a atuar na política exatamente esse ano. Me filiei pela primeira vez a um partido político no dia sete de abril de 2018, principalmente porque não se vê políticos que levantam essa bandeira, geralmente aparecem no mês de março, fazem alguns eventos e depois esquecem. Percebi que o que eu poderia fazer sem poder político já havia feito. Havia chegado a hora de alçar voos mais altos. Adquiri muito conhecimento sobre a segurança pública, uma vez que trabalho lá desde o ano de 2007 e em especial no período de 2011 a 2015 quando fui secretária adjunta de Administração Sistêmica. Nesse período conheci muito bem a estrutura da Segurança Pública, estudei e me especializei em gestão pública. Entendi que todo esse conhecimento somado a triste experiência de ter vivido uma relação agressiva poderia me ajudar a levantar essa bandeira para implementar políticas públicas que atendam o maior número de mulheres, até porque a violência doméstica não é responsável apenas pelo crescimento da violência doméstica, mas pelo crescimento da violência como um todo. Pesquisas mostram que uma criança não nasce violenta, mas o ambiente em que ela cresce é que a transforma em um agressor. Desta forma, a ausência de políticas preventivas não está aumentando somente a violência doméstica, mas todo e qualquer tipo de violência. Por isso, se um Estado de fato quer combater a violência, precisa começar por aquele crime que desestrutura a família.

Recado às mulheres.

Aproveito para dizer às mulheres que se cuidem. Ao começar um relacionamento novo não vá só pela emoção, procure levantar informações sobre a pessoa que está colocando dentro da sua casa. Adotamos muitos cuidados quando vamos adquirir um bem material para não correr o risco de nos depararmos com um defeito não aparente, mas não tomamos nenhuma precaução com aquele que vai dividir a vida conosco. O que posso dizer é que os agressores de mulheres são exatamente assim, apresentam defeitos não aparente. A princípio estão acima de qualquer suspeita, perante a sociedade, são homens gentis, educados, demonstram que se importam muito com a companheira, mas ao mesmo tempo tentam disfarçar o comportamento possessivo. Para as mulheres que vivem relacionamentos agressivos o que posso dizer é que procurem ajuda, pois sozinhas é muito difícil, mas tomem todo o cuidado, pois não queremos mais ver mulheres sendo assassinadas por aqueles que um dia juraram amor eterno.




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