• Cuiabá, 28 de Março - 00:00:00

"O Brasil precisa aprofundar sua democracia e não se fechar num regime ditatorial", alerta sociólogo


Da Redação - FocoCidade

O cenário eleitoral de 2018 foi marcado por um profundo acirramento de debates, em especial na conjuntura da disputa presidencial, com tônicas de defesas que levaram, inclusive, ao descompasso ou mesmo desrespeito à ordem natural do que prega a democracia.

Esse tom destoado, beirando muitas vezes ao enfrentamento na esteira aflorada entre amigos e familiares, e o contexto político que rege a disputa eleitoral, é analisado nesta Entrevista da Semana ao FocoCidade pelo professor, doutor em Sociologia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Naldson Ramos, uma das principais referências na área. 

“Esse acirramento sempre esteve presente por conta do perfil das candidaturas e das propostas programáticas dos seus respectivos partidos. O debate sempre girou em torno de quem está mais comprometido com o desenvolvimento econômico, social e político do país em relação aos seus problemas sociais como: geração de emprego e renda, redução da pobreza e da miséria, educação e cultura, moradia, saúde, transporte, entre outros”, pontua o professor.

Em trecho, assinala que “esse comportamento é provocado pelas paixões que o debate suscita. Uns não aceitam a ideias conservadoras e até preconceituosas de um candidato e, por outro lado, não aceitam as ideias progressistas e libertárias do outro candidato do PT. Espero, que depois a eleição, as pessoas voltem a ser como amigos e não como inimigos”.

Naldson Ramos alerta: “o Brasil precisa aprofundar sua democracia e não se fechar num regime ditatorial. Precisamos cada vez mais aprender a debater política de forma civilizada e sem violência. A política é a salvação, fora dela só violência, medo e insegurança”.

Na leitura catedrática, acentua ainda que “o recado foi dado, todavia nossa classe política, assim como os bandidos, são muitos reincidentes. Até parecem que não tem medo do cidadão e da Justiça. Democracia acima de tudo e o povo acima dos seus representantes”.

Confira a entrevista na íntegra:

O momento político atual é pontuado de acirramento profundo entre apoiadores dos presidenciáveis Jair Bolsonaro e Fernando Haddad. Por que o enfrentamento tem sido tão extremista de ambos os lados dos que defendem os respectivos postulantes?

O debate político no, e sobre o  Brasil é muito novo, se levarmos em consideração que a nossa democracia, pós 1988, só elegeu cinco presidentes (Sarney, Collor, Fernando Henrique, Lula e Dilma), sendo os três últimos reeleitos. O debate político em torno dessas candidaturas, desde a redemocratização, sempre pautaram a questão do avanço das garantias constitucionais previstos, principalmente no art. 5º da nossa Constituição que elenca todos os direitos sociais que em tese garantiria a consolidação da cidadania. Esse acirramento sempre esteve presente por conta do perfil das candidaturas e das propostas programáticas dos seus respectivos partidos. O debate sempre girou em torno de quem está mais comprometido com o desenvolvimento econômico, social e político do país em relação aos seus problemas sociais como: geração de emprego e renda, redução da pobreza e da miséria, educação e cultura, moradia, saúde, transporte, entre outros. A criação do Partido dos Trabalhadores (PT) foi um divisor de águas entre a velha e tradicional forma de representação política. Naturalmente enfrentou resistências por ser considerado “radical” nas suas propostas. Esse, digamos, foi o início do acirramento entre o que a mídia chama de esquerda versus direita. Essa divisão dicotômica e reducionista sempre esteve presente no debate por ocasião das disputas eleitorais e dentro do Congresso Nacional. Claro que não existem só partidos de esquerda e de direita. Existe um leque de 35 partidos registrados com diferentes posições ideológicas, mas na prática formam blocos considerados de esquerda, de centro, de centro esquerda e de direita. Mas voltando à pergunta sobre o acirramento dos apoiadores de Bolsonaro e de Haddad nesta eleição de 2018, eu diria que o acirramento que já existia noutras campanhas está sendo maior nesta por conta da grande novidade do candidato que se identifica como de direita, e classificado até como de extrema direita por suas propostas e ações que não estavam presentes nas disputas anteriores. Creio que a classe política mais tradicional não imaginava, ou não avaliaram corretamente, o potencial que a candidatura com perfil de direita pudesse representar uma ameaça à composição que tradicional se formava noutras eleições. Por outro lado, a crise institucional representada pela corrupção em todas as esferas do Executivo, Legislativo, Judiciário afetou profundamente a representação política tradicional de esquerda, de centro e sociais democratas. Convivendo e vendo esta situação, Bolsonaro viu ali uma oportunidade se opor a tudo que de negativo acontecia na República. Contudo, suas bandeiras vão além do ataque à corrupção, pois se insurge também contra os costumes e as liberdades individuais e coletivas,  no que diz respeito a homossexualidades, cotas para negros, falas preconceituosas contras as mulheres, movimentos sociais que lutam pela terra e até índios. Ao viabilizar sua candidatura por um partido nanico, não se imaginava que essas bandeiras e propostas voltadas para o liberalismo conservador, para os costumes e para os direitos sociais conquistados, fossem encontrar aceitação da sociedade. Esse foi o erro de avaliação de todos os partidos e até de parcela da intelectualidade brasileira. Vitorioso no primeiro turno derrotando todas as outras candidaturas de direita, de centro, da social democracia, restou a candidatura do Partido dos Trabalhadores. Desde então, e agora no segundo turno, os ânimos se exaltaram e confronto aberto se estabeleceu em torno do debate ideológico de esquerda e direita. O acirramento é, em parte, por conta das paixões que cada candidatura despertou no eleitorado e por conta do viés ideológico totalmente oposto nestas duas candidaturas, a ponto de incidentes acontecerem no calor do debate entre apoiadores de ambos os lados. Historicamente nunca tivemos uma eleição tão polarizada como esta. O que se espera é que prevaleça o bom senso e se respeite o resultado da urnas de ambos os lados, pois o vencedor terá que respeitar a Constituição e os adversários.

Historicamente nunca tivemos uma eleição tão polarizada como esta.

O envolvimento das pessoas nas questões de ordem política ganha dose especial nas redes sociais – com constantes enfrentamentos e que às vezes, ocorrem entre amigos ou membros de família. O que provoca esse comportamento?

A grande novidade desta eleição, sem dúvida alguma, é o papel das redes sociais que já existiam em disputas anteriores, mas nesta ganhou o lugar “do príncipe eletrônico”: a TV, os jornais e a propaganda eleitoral. Praticamente, na sua maioria, os cidadãos têm seu celular conectado na rede mundial de internet. Isto facilitou e muito a comunicação dos candidatos com seus eleitores a custo zero. Não imaginava, porém, que isto serviria também para acirrar o debate entre amigos e familiares. Esse acirramento chegou até os lares a ponto de dividir amigos e familiares. A família e amigos sempre foram os bens que mais prezamos, no entanto o debate contaminou as relações afetivas de tal maneira que muitos preferiram desfazer “amizades” construídas nas redes sociais e fora dela. Esse comportamento é provocado pelas paixões que o debate suscita. Uns não aceitam a ideias conservadoras e até preconceituosas de um candidato e, por outro lado, não aceitam as ideias progressistas e libertárias do outro candidato do PT. Espero, que depois a eleição, as pessoas voltem a ser como amigos e não como inimigos.

Esse acirramento chegou até os lares a ponto de dividir amigos e familiares.

Percebe-se nesse contexto ainda a dificuldade de muitas pessoas para aceitar e respeitar a opinião contrária. Esse tipo de conflito é o estopim da insegurança?   

O brasileiro tem muita dificuldade de aceitar o diferente. Até porque o diferente sempre foi negado no Brasil e visto como invisível. O negro no passado era visto como mercadoria e como pessoas sem direitos e sem portador de qualidades iguais aos dos brancos. O preconceito contra negros é histórico no Brasil e não mudou muito significativamente após a Constituição considerar que todos somos iguais, sem distinção de raça, cor, religião e direitos. Ultimamente as liberdades individuais proporciononaram o surgimento de novas identidades de gênero, de geração, de costumes e de crenças. Por contra desta diversidade cultural, de orientação sexual e de costumes, despertou, por outro lado, a não aceitação de determinadas condutas sob a alegação de fere os padrões e valores morais, religiosos e familiares. Esse descompasso entre o tradicional e as novas identidades provoca, em primeiro lugar, um estranhamento que noutro momento pode virar intolerância e violência. Isso tudo gera insegurança, medo, preconceito com relação ao diferente. Nos anos 50 e 60 o biquíni também gerou protestos porque agredia os valores cristãos e a família tradicional. Hoje a família tradicional usa biquíni na piscina, nas praias, ou nada em praias de nudismo e nem por isto a sociedade entrou em decadência.

O senhor apostaria nesse momento como sendo um viés revolucionário de ponto de vista de mudanças que poderão ocorrer no país, em razão do envolvimento direto da sociedade nas discussões, ou o oposto?

Espero que não. O PT, que já governou o país por 13 anos nunca valou em socialismo ou quis implantar uma ditadura de esquerda, ou seja, sempre respeitou o rito democrático de aprovação de leis e também obedeceu o que está escrito na Constituição em termos de regime político. Não estou falando dos erros na gestão da coisa pública. Já o PSL de Bolsonaro eu penso que, mesmo tendo maioria, não existe espaço em nosso país para implantar uma ditadura de direita com viés militar e civil, mesmo já tendo declarado numa oportunidade que a favor da ditadura e da tortura. Os brasileiros não merecem isto, vem de onde vier. E a comunidade internacional repudiaria veemente quem se aventurar nesta direção. O Brasil precisa aprofundar sua democracia e não se fechar num regime ditatorial. Precisamos cada vez mais aprender a debater política de forma civilizada e sem violência. A política é a salvação, fora dela só violência, medo e insegurança.

O atual e nível de discussões sobre a corrida presidencial conceitua para muitos o “regime democrático de exposição de ideias”.  Concorda?

Nas democracias tradicionais o viés ideológico está muito bem demarcado com poucos partidos disputando a simpatia do eleitorado. Precisamos urgentemente de uma reforma política que reduza para no máximo seis partidos a representação no Congresso Nacional. Isto facilita o eleitor se orientar, reduz custos para a sociedade e fica claro para o cidadão escolher os seus representantes. Ainda, facilita um governo de coalizão entre legendas de matriz programática afins. Democracia significa um regime em que o povo tem ampla participação nos destinos do governo e do país. Quanto maior for a participação popular, maior são as chances de legitimar o poder de representação. Portanto, sou favorável ao aprofundamento do debate com o aprofundamento de ideias, mas para isto precisamos também de um reforma política para facilitar ainda mais este debate democrático.

A política é a salvação, fora dela só violência, medo e insegurança.

Na guerra virtual, até mesmo a Justiça tem sido atacada. Como garantir respeito às normas e limites?

A imprensa já tem uma lei que regulamenta a produção e veiculação de informações. O legislativo já tem também suas normas sobre a veiculação de informações por meio das redes sociais. O problema é como fazer esse controle. São milhões de celulares e computadores interligados em rede que postam o que bem quer, sem muitas vezes checar a fonte, dando origem as fake news e mensagens carregadas de preconceito, intolerância e até violência. As polícias e o judiciário têm que criar instrumentos de investigação e controle constantes para monitorar essas redes sociais, impondo desta forma limites e punindo os excessos.

Se por um lado, discussões ocorrem de forma mais intensa entre os que acompanham a disputa, por outro, o índice de abstenção continua alto. Na sua avaliação, esse seria um indicativo de rejeição aos nomes postos na disputa ou remeteria isso ao contexto geral de reação negativa sobre o meio que rege a política?

A abstenção sempre foi considerada alta no Brasil. Isto tem até uma explicação. Antes de 1988, analfabetos não votavam, menores de 18 anos também; as mulheres só começaram a votar a partir de 1934. Atualmente o voto é obrigatório e o eleitor não sente confiança nos representantes eleitos e nas instituições de representação popular. Então vem a pergunta, votar para que? Do vereador ao Presidente existe uma distância muito grande em relação aos problemas vivenciados pela população, no seu dia a dia, e os representantes só aparecem de 4 em 4 anos para pedir votos sem prestar contas do que já fez ou fará. Mas abstenção é também uma forma de protesto em relação aos candidatos que muitas vezes não representa os interesses dos eleitores. A abstenção é também um recado para os políticos em relação às suas condutas e práticas.

O efeito “renovação na Assembleia Legislativa e Câmara Federal pode ser interpretado também como recado aos políticos?

Renovação é sempre bem vinda em qualquer área da organização da sociedade. Na democracia devemos avaliar nossos candidatos de 4 em 4 anos e mudar, se for o caso. Do jeito que se encontra a nossa Assembleia e nosso Congresso Nacional se renovassem dois terços, isto poderia ser considerado muito bom, dada a falta de compromisso com a representação pública e por conta dos escândalos envolvendo deputados federais, estaduais e  senadores da República. O recado foi dado, todavia nossa classe política, assim como os bandidos, são muitos reincidentes. Até parecem que não tem medo do cidadão e da Justiça.

A abstenção é também um recado para os políticos em relação às suas condutas e práticas.

Qual sua perspectiva sobre avanços no país tomando como base a integração da sociedade nos debates?

A sociedade precisa participar ainda mais da vida política do país. Não só em período eleitoral, mas fiscalizando e denunciando os desmandos oriundos da representação política. Enquanto a sociedade ficar ausente, ou só participar nestes momentos de embate eleitoral, continuaremos reféns de candidatos eleitos que procuram a representação pública apenas para aumentar o seu patrimônio e usar o mandato como moeda de troca para interesses privados ou públicos. Cobrar a prestação de contas dos eleitos é uma medida de controle mais eficiente que dos órgãos de controle interno e da Justiça. Democracia acima de tudo e o povo acima dos seus representantes.




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