• Cuiabá, 20 de Abril - 00:00:00

"Não existe déficit da previdência. É um discurso de convencimento", alerta Jonas Albert


Da Redação - FocoCidade

O rombo da previdência social, ora nos discursos do Governo Federal, e que se tornou calcanhar de Aquiles na gestão estadual, amarga os reflexos de um sistema altamente ultrapassado, ineficiente e que mantém o dilema do aumento da contribuição como instrumento de socorro para sanar o déficit.

Ocorre que esse “déficit” é questionado por especialistas no assunto, como o advogado previdenciarista, Jonas Albert Schmidt, uma das referências na área.

Ao avaliar esse quadro, é taxativo: “não, o déficit não existe. Não sou eu, pesquisador do assunto, assim como tantos outros que afirmam isso, a própria CPI da Previdência provou que há historicamente superávit no RGPS. O discurso do déficit é um discurso ideológico de convencimento”.

O olhar pontual do advogado alerta para a “irresponsabilidade” nas gestões. “A maioria absoluta dos RPPS’s que foram a ‘falência’ digamos assim, ou estão em péssimas condições financeiras é devido à falta de repasse das alíquotas, e isso é irresponsabilidade do gestor (quando não se trata de crime de apropriação indébita previdenciária), seja ele um governador ou um prefeito, ou então por questões mais graves ainda, que é a corrupção, desvio dos valores.”

Nesta entrevista ao FocoCidade, ele discorre sobre pontos emblemáticos do sistema, assinalando o alerta: “o que precisamos é de um sistema público e fortalecido de previdência social, formalização das relações trabalhistas, criação de empregos, estabilidade econômica. Mas para tudo isso precisamos nos tornar um país sério, e infelizmente não somos”.

Jonas Albert Schmidt é advogado Previdenciarista, Professor Universitário, Doutorando em Política Social pela UnB, Mestre em Política Social (UFMT/Brasil – intercâmbio na Universidade de Coimbra/Portugal), Especialista em Administração Pública (FESMP/MT – FMP/RS), Vice-Presidente da Comissão de Direito Previdenciário da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional de Mato Grosso, Membro do Fórum Permanente de Advogados Previdenciaristas do Conselho Federal da OAB e da Comissão Nacional de Previdência Social da Associação Brasileira de Advogados – ABA.

Confira a entrevista na íntegra: 

Existe ou não o temeroso déficit previdenciário?

Não, o déficit não existe. Não sou eu, pesquisador do assunto, assim como tantos outros que afirmam isso, a própria CPI da Previdência provou que há historicamente superávit no RGPS. O discurso do déficit é um discurso ideológico de convencimento. Isso vem se repetindo há anos, não apenas neste governo. Como obter apoio popular com uma medida de austeridade sem que se tenha um argumento forte? Ou seja, “se não reformar não haverá dinheiro”. Sempre repito isso, se não há dinheiro, por que o governo continua aplicando a DRU (Desvinculação de Receitas da União) sobre os recursos da seguridade? São 30% de recursos desvinculados, uma generosa fatia para um sistema “falindo”, não acha?

Quando se fala em cálculo atuarial, está e falando em previsão futura para 15, 20 ou 30 anos a frente. Não é prematuro se afirmar que no futuro teremos mais aposentados do que trabalhadores na ativa?

Cálculo atuarial nada mais é que uma projeção que chega até 35 anos, que hoje é o tempo máximo de contribuição para uma aposentadoria integral do homem (período mais longo de contribuição em vigor atualmente). Esse cálculo prevê tecnicamente se haverá recursos naquele fundo de previdência (um RPPS, por exemplo) para pagar a atual massa de segurados, e até quando esse valor vai se esgotar, isso num regime próprio, onde o sistema não é de solidariedade como é no Regime Geral. Mas vale lembrar que não se trata, em tese, de um regime de capitalização individual, como é uma previdência (que não é social) privada. Mas esse assunto ficará para minha tese de doutorado na UnB. Assim, é possível fazer ajustes nas alíquotas destes regimes para então equilibra-los financeiramente. Já o regime geral (INSS) é um sistema de solidariedade intergeracional, onde o financiamento não se resume apenas nas contribuições patronais e dos segurados, mas tem uma grande parcela dos impostos.

A disparidade entre as aposentadorias pagas pelo INSS que tem teto máximo em contrapartida com aquelas pagas pelo Poder Público que excedem em muito os valores normais, é a causa de toda a celeuma em torno da Previdência?

Primeiramente são regimes distintos, orçamentos distintos. O segurado servidor público que tem um regime próprio recebe de seu fundo de previdência, não é o segurado do INSS que vai pagar aquela aposentadoria. Importante deixar isso bem claro. No INSS há um teto sim, assim como um segurado do INSS contribui até o valor do teto, ou seja, não vai pagar por algo que não vai receber, em tese, porque ao aplicar o fator previdenciário estará deixando de receber por algo que contribuiu, o que é uma injustiça. Já nos RPPS’s, o segurado contribui sobre seus vencimentos básicos mais os valores permanentes, ou seja, aqueles adicionais que já incorporaram sua remuneração. Assim, se um servidor público ganha acima do teto, ele vai ao mesmo tempo contribuir sobre esse valor que ultrapassou, sendo que ao aposentar receberá, na regra permanente, sobre a média contributiva, ou seja, nada além daquilo que contribuiu. Previdência é seguro, recebe-se sobre aquilo que pagou. Infelizmente o “senso comum” acredita que quem paga a aposentadoria de um juiz, por exemplo, é o trabalhador da iniciativa privada, isso não é verdade. Juiz, no nosso exemplo, é servidor público do Estado, quando estadual, todos os estados da federação possuem regimes próprios, ou seja, essa aposentadoria não é paga pelo INSS, e sim pelo regime próprio que aquele juiz, servidor público é vinculado. Por fim, muito se acusa os servidores públicos como os “vilões” da previdência, outra inverdade. Dei o exemplo do juiz, mas esse é exceção. A maioria absoluta dos servidores públicos não ganham nem próximo ao teto. Servidor público também é o professor da escola municipal, a merendeira, o gari, o enfermeiro, o policial militar, enfim, nem de longe são privilegiados e também responsáveis por um “déficit” (inexistente) do INSS.

Previdência é seguro, recebe-se sobre aquilo que pagou. Infelizmente o “senso comum” acredita que quem paga a aposentadoria de um juiz, por exemplo, é o trabalhador da iniciativa privada, isso não é verdade.

Porque a Previdência Privada de Bancos, Instituições de crédito entre outras é superavitária e a pública é deficitária?

Previdência privada não é previdência social, não é direito, é contrato bancário. Previdência privada é um produto oferecido pelo banco, onde uma pessoa (as que podem fazer isso) paga para um resgate futuro e incerto, sim, incerto, por se tratar de “investimento” a médio e longo prazo, se aquele banco ou carteira financeira for a bancarrota, todo o investimento vai junto. Sejamos honestos. Previdência privada não tem garantia do Estado, não tem contrapartida patronal, não é direito. Se fala que é superavitária porque são volumosos recursos aplicados nos bancos e os próprios bancos especulam no mercado financeiro com esses valores. Agora a pública, repito, o INSS não é deficitário.

Previdência privada não tem garantia do Estado, não tem contrapartida patronal, não é direito.

Pode-se afirmar que a previdência social, no âmbito da gestão pública estadual e nacional, está falida?

O INSS, como já comentei, não é deficitário. Já os regimes próprios, há particularidades sim. Existem regimes que estão com enormes déficits, mas isso não é culpa do sistema, é problema de gestão. A maioria absoluta dos RPPS’s que foram a “falência” digamos assim, ou estão em péssimas condições financeiras é devido a falta de repasse das alíquotas, e isso é irresponsabilidade do gestor (quando não se trata de crime de apropriação indébita previdenciária), seja ele um governador ou um prefeito, ou então por questões mais graves ainda, que é a corrupção, desvio dos valores, enfim. Muitos RPPS’s precisaram fazer segregação de massa, o que é isso, passar os atuais aposentados e pensionistas para a folha de pagamento do Estado ou Município, e começar do zero para os atuais servidores da ativa. Mas em contrapartida, a maioria dos RPPS’s dos municípios são superavitários, ou seja, possuem mais recursos que o necessário. O problema não é o sistema, é como ele é gerenciado em alguns casos.

Quais os principais fatores que provocaram esse descompasso?

O INSS não é falido e seu sistema é de solidariedade, não depende só da contribuição, é um financiamento público feito por toda a sociedade, já os RPPS’s, que são financiados exclusivamente por contribuições diretas (patronal e segurado), em alguns casos entram em declive devido a gestão do fundo, não em função do sistema.

A discussão em torno da proposta de suavizar o déficit previdenciário por meio da venda de imóveis do patrimônio público seria uma alternativa viável? 

O artigo 195 da Constituição Federal prevê a base de financiamento do INSS, o atual e os governos anteriores sempre mostraram apenas a receita das contribuições patronais e dos segurados e de outro lado todas as despesas da seguridade, incluindo até assistência. Assim existe um “falso déficit”, mas a previdência é financiada até por concurso de prognósticos (loterias), ou seja, a estrutura de financiamento é capaz de suprir as necessidades do sistema. O que o governo precisa fazer é parar de aplicar a DRU sobre os recursos da seguridade, como já expliquei anteriormente, parar de conceder tanta exoneração fiscal aos grandes grupos e empresas de grande porte que possuem capacidade contributiva de sobra, e cobrar, também, esses “grandes” que devem bilhões ao INSS. Não é vendendo um imóvel que se fortalece o sistema de financiamento, e fortalecer a estrutura já existente e direcionar esses valores para sua verdadeira finalidade, financiar a seguridade social. 

O problema não é o sistema, é como ele é gerenciado em alguns casos.

Como avalia a possibilidade pontuada pelo Estado de aumentar a contribuição previdenciária dos servidores públicos de 11% para 14% e que encontra resistência também entre Poderes como o Tribunal de Justiça?

Como já disse, a maioria dos RPPS são superavitários, aumentar a alíquota dos segurados é desnecessária. Em casos pontuais, como aconteceu no Estado do Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, elevaram para 14% a alíquota, o que a lei permite. Mas como já disse, está se penalizando o segurado por irresponsabilidades do passado. O sistema por si não cria déficits, ele (déficit) é criado por questões de gestão. Um prefeito que não faz concurso para efetivar servidores e possui muitos cargos comissionados, isso gera déficit, um governador que não faz o repasse das alíquotas, isso gera déficit. Como tempo, por óbvio, esse regime vai entrar em declínio financeiro, e a saída neste momento está sendo colocar a responsabilidade sobre os trabalhadores, fazendo pagar mais para equilibrar esses fundos previdenciários.

Os números assustam. Cálculos apontam que no atual formato e déficit previdenciário do Estado pode chegar a R$ 3 bilhões até 2022. existe outro mecanismo além do aumento da contribuição, para suavizar esse quadro?

Quando a situação já chega a esses números, existem alternativas sim, como já disse, segregam massa, aumentam alíquotas, criam alíquota suplementar. Mas continuo dizendo, se fossemos um país verdadeiramente sério, isso não aconteceria.

Mas continuo dizendo, se fossemos um país verdadeiramente sério, isso não aconteceria.

Revisão do teto das aposentadorias também pode ser considerada nesse conjunto de discussões?

Isso é uma discussão complexa, fala-se em teto, mas e o salário mínimo no Brasil que é de fome? Teto serve para dizer: “você receberá somente até esse valor”, mas também contribuirá somente sobre isso. Um exemplo, se um servidor público em um RPPS recebe (salário) um determinado valor que ultrapassa o teto, ele vai contribuir sobre esse valor. Se não houvesse teto no RGPS, o segurado iria contribuir sobre tudo o que recebe, é a lógica do seguro que adotamos no Brasil.

Na sua leitura, é possível resolver, encontrar uma solução definitiva e rápida para sanar essa problemática do déficit previdenciário? Defende outro modelo?

Nosso modelo é o bismarckiano, criado na Alemanha ainda na virada do século XVIII e XIX. No RGPS tem financiamento composto por contribuições diretas e indiretas (impostos) e é de solidariedade simples e pacto intergeracional, modelo muito comum nos países europeus. Já os sistemas utilizados nos RPPS’s é uma espécie de capitalização, mas não é a mesma dos bancos, porque não são individualizadas. O sistema adotado no Brasil é o correto, devida nossa realidade. Não é possível vislumbrar um sistema que se aproxima dos “privados”, como o Chile fez, porque nossa realidade social é distinta da deles. Precisamos sim de um sistema de solidariedade pois a capacidade contributiva no Brasil não é igual para todos. Precisamos sim, de financiamento por meio dos impostos, precisamos fazer redistribuição de renda por meio da Previdência. Isso é o que mais podemos nos aproximar de justiça social. Mas mesmo assim, olhando para o outro lado, sob outro viés, das pessoas que não estão inseridas no trabalho formal (carteira assinada), estas não recebem cobertura da previdência, pois não são seguradas, mas contribuem diretamente para o financiamento, pois muitos impostos que pagamos são direcionados para o INSS. Ou seja, todos pagam a previdência, mas nem todos se beneficiam dela. Aí neste ponto, preciso negar o que acabei de dizer, ainda que haveria justiça social, a injustiça ocorre ao passo que vivemos num país do emprego informal, das subcontratações, da precarização do trabalho e emprego. O que precisamos é de um sistema público e fortalecido de previdência social, formalização das relações trabalhistas, criação de empregos, estabilidade econômica. Mas para tudo isso precisamos nos tornar um país sério, e infelizmente não somos.




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