• Cuiabá, 28 de Março - 00:00:00

'Os registros são estarrecedores e uma ponta do iceberg', alerta desembargadora Maria Erotides


Sonia Fiori - Da Editoria

Os números não deixam dúvida: a violência contra a mulher é no mínimo alarmante e continua sendo um desafio ao Estado, em especial, ao Judiciário de Mato Grosso.

Levantamento da Corregedoria-Geral da Justiça (CGJ) registrou, em 2016, 49 ações penais de feminicídio. Em 2017, esse número saltou para 76, um aumento de 55%. As estimativas para este ano são negativas também, pois em apenas dois meses seis casos do crime já chegaram ao Judiciário mato-grossense.

A quantidade de processos distribuídos relativos à violência doméstica aumentou em 82,93% em apenas um ano. Em 2016, a CGJ registrou 3.925 processos distribuídos em Mato Grosso, sendo que em 2017 foram 7.180 processos.

À frente da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (Cemulher), desembargadora Maria Erotides Kneip, lidera o Mutirão do Sistema de Justiça pela Paz em Casa, no decorrer desta semana, na Arena Pantanal.

Nesta Entrevista da Semana especial ao FocoCidade, no Dia Internacional da Mulher, a desembargadora conhecida pelo pulso firme, sendo uma das referências do Judiciário, assevera o desconforto com os registros, pontuando a urgência de ações que possam promover mudanças nesse campo, sendo um duro viés cultural.

Na análise desse cenário, a magistrada observa o aspecto da gestão, as dificuldades relativas aos recursos e nesse quesito, assinala compreensão com o aperto de cinto do Executivo estadual, assinalando ainda posição do presidente do TJ, desembargador Rui Ramos de “conter despesas” no Poder.

Maria Erotides faz outras considerações como em relação às críticas dirigidas ao Judiciário sobre valores recebidos em proventos, e adentra no espaço da política, sendo seu nome costumeiramente aventado para ingressar na disputa eleitoral.

Confira a entrevista na íntegra:   

O trabalho desenvolvido na Semana da Paz em Casa acelera ações que já vem sendo trabalhadas ao longo dos anos, mas esse cenário continua recorrente, por que?

Preocupa demais porque o número de feminicídio aumentou e foi esse número que não permitiu que o Estado tivesse a queda que teve em número de homicídios durante o período. Nós ainda temos um registro de média de 20 medidas protetivas por dia, na Delegacia de Defesa da Mulher de Cuiabá, só da Capital. É um índice muito alto e por isso resolvemos fazer essa ação, mas os números são alarmantes, infelizmente. E o que é pior. Eu vejo que a violência doméstica é esse aspecto cultural da violência, que vem do paternalismo também. Isso também precisa ser tratado com esse viés cultural, que não é fácil. Mas penso que a criminalização do agressor, ela realmente contribui para que haja uma superação da violência doméstica. Por isso a minha preocupação de que os inquéritos sejam concluídos, que as ações penais sejam concluídas, que haja punição se for o caso, que se resolva, porque é a única ferramenta que a gente tem, penso, atualmente.

A aplicação da punição de forma mais célere é um mecanismo eficaz para promover mudanças.

A atuação tem que ser rápida, porque para a mulher chegar na delegacia e denunciar o companheiro, ela passa por um processo muito difícil. Ela vai denunciar o companheiro que a agrediu mas cujo companheiro é também pai dos seus filhos. Então a mulher vai para a delegacia superando uma série de entraves. Quando ela consegue vencê-los, e ela chega e denuncia, se ela não tiver nessa notícia um tratamento de rapidez, de celeridade, de segurança, acredito que ao invés de ajudar a gente pode piorar o quadro. A notícia de uma violência doméstica precisa ser tratada como alguma coisa que merece uma resposta imediata, porque se não vier, a situação vai piorar para a vítima.

A notícia de uma violência doméstica precisa ser tratada como alguma coisa que merece uma resposta imediata, porque se não vier, a situação vai piorar para a vítima.

Caiu o mito de que a violência ocorre com mais frequência nas camadas mais vulneráveis?

A violência doméstica não tem esse viés. Me recordo de uma vez que fui procurada por uma esposa de um funcionário muito importante do Estado, e quando eu disse a ela ‘nós vamos à Delegacia de Defesa da Mulher’ e vamos denunciar seu marido, ela disse: ‘eu não posso. Como que as pessoas com que ele lida amanhã, vão ver isso. Ele não pode, é uma pessoa muito importante’. E eu disse: se nós não formos, só Deus sabe o final disso. E nós fomos, ele foi chamado e inclusive conduzido naquela época coercitivamente até a delegacia, e hoje, a gente sabe que é um casal que vive bem, com respeito. Ele teve uma punição, mas eu sei o quanto foi difícil para ela, pensando justamente na posição desse senhor, que era uma pessoa importante, uma pessoa conhecida pela excelência do seu exercício profissional, mas que em casa, agredia a mulher. A violência não escolhe as classes sociais mais pobres, de forma nenhuma. E parece que quanto maiores os muros, mais silenciosa ela é e mais perversa. Penso que esse ato da violência que acontece nas classes mais altas, é extremamente um lado perverso da violência.

As ações são pontuadas nesse alinhamento ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Mas como avalia a política pública do Estado? Vem cumprindo o seu papel?

O ideal seria que nós tivéssemos Delegacias Especializadas num número muito maior no Estado todo. Mas nós sabemos das dificuldades pelas quais o país atravessa. Não é fácil. A leitura para quem trabalha com violência, com crime, é fazer delegacias que atendam sempre crimes muito graves. E aí colocam o tráfico de drogas, o latrocínio, os homicídios, mas precisa ser dado prioridade à violência doméstica porque penso que ela é a porta. O que é mais importante para nós do que a família? E a gente precisa fazer com que a família viva com respeito, que os homens respeitem a situação da mulher, a condição de mulher em todas as formas. A gente sabe que não tem sido fácil para o Estado administrar toda essa situação, mas nós temos em Cuiabá uma Delegacia da Defesa da Mulher, em Barra do Garças, que é exclusiva, Sinop, Rondonópolis, Várzea Grande. E onde nós temos, vamos precisar fazer esse tratamento que estamos fazendo agora. Esse é um começo, um pontapé que estamos fazendo em Cuiabá nessa Semana da Justiça pela Paz em Casa, mas vamos precisar estender essa ação nos demais cantos do Estado.

Penso que esse ato da violência que acontece nas classes mais altas, é extremamente um lado perverso da violência.

A educação nesse sentido é uma via fundamental?

Sim. Penso que tudo começa aí. A mudança de cultura ela vem pela educação, pela formação. Nós precisamos mostrar para os meninos desde cedo o respeito à condição da mulher. Mulher se respeita, não se agride de forma nenhuma. Por mais que você discorde do que ela é, do que ela faz, tem que se tratar com respeito, como são respeitados os homens. Nós temos que respeitar sim pela condição mesmo de mulher, isso é cultural. Isso vem sendo trabalhado nas escolas, também de certa forma por programas de organizações não governamentais, vem sendo tratado, mas precisa ser intensificado. Na verdade, isso tem que ser um exercício diário. O respeito à mulher tem que ser um exercício diário.

A senhora pontua o reconhecimento às dificuldades da gestão pública. No aspecto geral como analisa a gestão do Estado, essa questão de atraso nos repasses do duodécimo...

Tem sido difícil. Nós sabemos que o Estado passou por um assaque em gestões passadas. Trabalhar com as consequências disso não é fácil. Eu imagino o que o governador Pedro Taques vem sofrendo para poder vencer isso. Mas sei que ele tem tido a compreensão de todos os Poderes, de todas as instituições para que a gente possa superar. Nós estamos vendo provada a corrupção. As delações do ex-governador, do ex-presidente da Assembleia Legislativa, elas comprovam o assaque que foi feito ao Estado. Mas devagar vamos vencendo. O homem cuiabano, mato-grossense, a mulher cuiabana, mato-grossense, eles são destemidos. São trabalhadores, são pessoas que lutam. Temos excelentes profissionais em todas as áreas e a gente vai vencer isso também.

Trabalhar com as consequências disso não é fácil. Eu imagino o que o governador Pedro Taques vem sofrendo para poder vencer isso.

O Judiciário tem exercido um papel de colaborador nesse aspecto, como na realização de mutirões fiscais. Avalia alguma outra forma de a Justiça vir a contribuir ainda mais para a retomada de equilíbrio do caixa do Estado?

O presidente Rui Ramos tem feito isso da melhor forma possível. Ele tem estado junto com os outros Poderes. Ele tem conversado, tem elaborado orçamento e também tem feito o seu dever de casa, segurando os gastos que são do Poder Judiciário. Nós teríamos inúmeras Varas, Comarcas para serem instaladas. Nós teríamos concursos públicos para serem feitos e o nosso presidente vem segurando, vem mantendo o equilíbrio, para que a gente possa chegar numa solução, num equilíbrio mesmo de todo o Estado. Acredito que tanto a gestão do Governo como a do Tribunal de Justiça tem conseguido fazer esse entendimento tão necessário para o equilíbrio financeiro e orçamentário do Estado.

Nessas discussões de caixa apertado, por vezes também se coloca na sociedade uma crítica em relação à revisão do custeio da máquina. Quando se fala em máquina, se analisa também o Judiciário e o Ministério Público em questões de adicionais aos salários. A senhora vê alguma possibilidade de esse tema ser posto em discussão, considerando a crítica?

Gera (crítica) e nós sabemos disso. E com todo direito, as pessoas que não entendem, não sabem, tem todo direito de criticar. E mesmo aqueles que entendem de outra forma, a gente respeita também. O ideal seria que nós pudéssemos ter um salário reajustado, justo, e que infelizmente isso não acontece. São utilizadas essas Verbas Indenizatórias para poder chegar a um número justo de salário. Eu me preocupo com essa defasagem porque a gente pode chegar a não ter melhores profissionais, por falta de atrativo de salário. Isso me preocupa. Para mim, na condição de magistrada há 33 anos, deixar o Poder seria bem melhor. Um escritório, o exercício de um magistério, com certeza isso me daria um lucro muito maior do que o salário que eu ganho. Não sei se de repente a gente não tenha tratado isso como um assunto que merece um enfrentamento, mas a sociedade precisa sim conhecer a realidade do que a gente passa.

Para mim, na condição de magistrada há 33 anos, deixar o Poder seria bem melhor.

A senhora fez uma análise que leva a outra. Seu nome por várias vezes foi posto como via na política. Já recebeu convites. Então analisa uma possibilidade futura?

Eu não descarto. A gente nunca descarta até porque o futuro a Deus pertence. Mas hoje é completamente inviável. Eu não teria condições nenhuma. Mas eu não posso negar que é uma coisa que me atrai sim, mas inviável hoje. Eu tive sim convites para vários cargos, de vários partidos, de vários segmentos, mas por enquanto não, a não ser o retorno à advocacia, esse eu não descarto. Mas o exercício político ainda não.

A gente nunca descarta até porque o futuro a Deus pertence.

A inserção de nomes de membros do Judiciário no contexto da disputa eleitoral, como ocorre no Estado, pode representar um diferencial no quadro?

Acho ótimo. A política é maravilhosa. O bem comum é tudo o que a gente busca. A gente busca fazer isso com as nossas decisões. Então trabalhar pelo bem comum é algo que a gente já faz diuturnamente nos nossos processos. Imagina um magistrado que enfrentou todo o interior, que conhece toda a sua realidade, ele tem muito mais condição de ser um bom gestor, de ser um bom legislador. Vejo com muito bons olhos a experiência da magistratura para o exercício de uma carreira política.

Recado.

Precisamos trabalhar em conjunto para que a gente consiga diminuir essa violência doméstica. Não é possível que uma Capital linda como é Cuiabá, continue registrando 20 casos diários de violência doméstica. Não é possível. Nós precisamos acordar para isso. Esse número é para mim estarrecedor. São 20 mulheres e veja, 20 casos noticiados. Nós sabemos que isso é só a ponta de um iceberg. Imagina o que existe por debaixo disso tudo. Nossas mulheres não podem estar morrendo porque pensam de maneira diferente de seus companheiros. Temos que respeitar a mulher. E penso que é justamente essa alegria cuiabana que pode acabar com isso, confirmando esse viés cultural de que nós somos iguais. Nós temos os mesmos direitos. Somos diferentes sim, graças a Deus, mas somos iguais em direitos e devemos e merecemos respeito por isso.




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