• Cuiabá, 28 de Março - 00:00:00

A greve geral contra as reformas

Nos anos 90, Antonio Tabucchi, grande escritor italiano e profundo conhecedor de Fernando Pessoa e da cultura luso-brasileira em geral, e Umberto Eco, um dos maiores intelectuais do século, travaram um interessante debate nas páginas da revista italiana Micromega. Tabucchi defendia o engajamento e a análise crítica e direta dos acontecimentos histórico-políticos, enquanto Eco sustentava a tese do distanciamento necessário para o julgamento imparcial e aprofundado de qualquer evento.

Prefiro usar o distanciamento proposto por Eco quando me solicitam a análise de qualquer acontecimento ligado aos seres humanos, seja uma greve geral e um protesto generalizado, como o que está em andamento nesta sexta-feira, precedendo o fim de semana e o feriado do Dia do Trabalho, seja um evento cultural. No calor do momento, é fácil deixar-se levar pela paixão, quando, na verdade, o intelectual e os homens cultos em geral devem pautar-se por um possível domínio das paixões, como ensinam os grandes filósofos, de São Tomás de Aquino a Nietzsche.

Sendo assim, procurando controlar as possíveis paixões dominadoras, embora eu me encontre no calor do momento, não posso ser nem contra nem a favor da greve geral de hoje. Não a apoio porque, embora esteja em desacordo com boa parte das propostas de reforma do atual governo, não posso simplesmente (e banalmente) julgar que a situação da Previdência e das leis trabalhistas deva continuar como está. Se nada for feito, não é preciso ser um rei dos cálculos para concluir que não haverá dinheiro nem para pagar as já exíguas aposentadorias do INSS. O que propor? Como protestar sem paralisar as já caóticas metrópoles brasileiras?

A razão e o bom senso devem mediar o ímpeto e a ação prática. Naturalmente, quando somos muito jovens, os ímpetos são maiores, mas nem por isso devemos deixar de convidar os jovens à razão. Não há como apostar no pior, que ainda está por vir, apenas porque não concordamos com a legitimidade do presidente que aí está ou com a composição da Câmara e do Senado, eleitos por um povo iludido e ansioso por justiça social.

À luz da razão, portanto, não há sentido em protestar por protestar, atribuindo um caráter negativo a qualquer ação ou proposta advinda do atual governo. Em poucas palavras, devemos evitar na prática do cotidiano o uso da mentalidade do fanático, que se move apenas na direção da defesa do ser idolatrado ou da causa única. Em vez de gritos públicos e atos de vandalismo, por que não propor pacíficas assembleias públicas em que, contendo e procurando dominar as paixões, os cidadãos comuns tenham a oportunidade de expressar pacificamente, respeitando a fala e opinião dos outros, a própria opinião?

Evidentemente, as discussões públicas poderiam e deveriam ser incentivadas pelo próprio governo, em lugares públicos adequados (escolas e teatros públicos, por exemplo), antes de qualquer tentativa malandra de acordos políticos espúrios para a rápida aprovação de propostas.

Como se chegou a esta caótica situação socioeconômica do Brasil atual? Há diversos fatores, tais como erros grosseiros na condução da economia que hoje, com o devido distanciamento, são ressaltados por economistas reconhecidamente competentes como Eduardo Gianetti, entre outros. Há escolhas políticas erradas como as alianças feitas pelo Governo Lula com os representantes mais retrógrados das elites brasileiras. Há a conjuntura internacional, não devidamente avaliada, tanto no governo de FHC, como nos governos de Lula (que menosprezou a crise econômica mundial) e de Dilma. Enfim, há, sobretudo, uma descontinuidade nas tímidas políticas sociais dos vários governos que se seguiram.

Só para fazer um exemplo, desde a época dos militares, nos anos 60, e 70, as tentativas (infrutíferas e meramente retóricas) de extirpar o analfabetismo e a miséria das regiões mais atrasadas do país foram muitas e raramente tiveram sequência, sendo sempre sujeitas a interesses locais e a clientelismos de todos os tipos. A meu ver, trata-se de uma situação que se perpetua no Brasil, acarretando prejuízos enormes, maiores até do que os desvios de dinheiro público das quadrilhas de corruptos que estão sempre à espreita e que realmente movimentam a economia, gerando inclusive empregos!

Chegou, portanto, o momento de rever os protestos automáticos contra qualquer medida ou proposta de reforma vinda deste ou de qualquer outro governo. A greve geral mais desmobiliza do que agrega, mais desfaz do que constrói. As passeatas públicas, embora imbuídas de espírito patriótico, facilmente se carnavalizam ou descambam para o vandalismo. Mais do que apelos a boicotes, protestos nas ruas ou nas redes sociais, precisamos urgentemente formar consciências. Antes de protestar, portanto, precisamos ler, ponderar, discutir, avaliando os prós e os contras, contendo as paixões que nos levam apenas a enxergar no outro, seja o colega de trabalho, seja o vizinho ou o Estado, o inimigo sempre disposto a nos enganar.

 

Sérgio Mauro é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.



0 Comentários



    Ainda não há comentários.