• Cuiabá, 29 de Março - 00:00:00

Não culpem a vítima

Nas discussões sobre estupros, é comum culpar a vítima pela miopia que o machismo impõe. A mulher foi estuprada porque usou roupas inadequadas, porque se insinuou, porque estava desacompanhada, porque é vulgar, enfim, porque não deveria estar onde estava. Daí que os agressores se sentiram no “direito” de estupra-la, uma vez que tinham uma espécie de “autorização tácita” da vítima. Em suma, na visão deturpada do agressor, a vítima é a culpada. Parece que ocorre o mesmo com o Brasil, em geral. Nosso país é formado por uma margem significativa de semianalfabetos, gente que não teve oportunidade de ler um livro ou cursar o ensino médio e superior, que sobrevive com um ou dois salários mínimos, que não tem outro meio de informação que não sejam os telejornais. Mas é justamente esse povo que “não sabe votar” o culpado pela classe política nos roubar tanto. Parece-me que algo está errado nessa lógica. Não é estranho?

Cerca de 20 milhões de brasileiros não sabem escrever o próprio nome. Quase 80 milhões nunca foram ao cinema, ao teatro ou a uma exposição de arte. Temos 100 milhões de conterrâneos não leram um único livro. São números assustadores da nossa própria ignorância. Enquanto isso, espera-se desse mesmo povo uma consciência eleitoral suficiente para votar no candidato certo, para saber distinguir o que é e o que não é uma promessa vazia de ocasião, qual a importância de eleger alguém honesto. Ora, “alguém honesto” não promete o muro da casa, o asfaltamento da rua, a faculdade do filho. Esse “alguém honesto” não faz acordos por cargos comissionados, por licitações viciadas ou por indicações em cargos vitalícios. Portanto, “esse alguém honesto”, além de ser difícil de arrumar, não resolve as necessidades mais urgentes do povo que não sabe distinguir o honesto do desonesto. Não sabe porque não pode saber, não tem acesso à informação, não tem forma de controle, não tem nada.

Curiosamente, porém, continuamos debitando na conta do povo o nosso fracasso político. “Culpado é o povo que elege essa gente” – dizem por aí. Penso justamente o contrário. Se temos os políticos que temos no cenário regional e nacional, é em função da ignorância maciça do eleitor. O vereador golpista, o prefeito malandro, o deputado multiprocessado, o senador esquemado são, todos, recibos da nossa falta de educação. Façamos um comparativo com outros países. Alguma nação pobre e analfabeta elege regularmente bons representantes? Exceções como Gandhi e Mandela confirmam a regra de que um país de cidadãos sem acesso à educação de qualidade tem enorme chance de perpetuar a própria ignorância por meio de um sistema político corrupto, viciado, imoral. Os países asiáticos e africanos sofrem muito duramente o resultado de representações políticas débeis, assim como os estados latino-americanos estão abertos ao populismo salvacionista graças à falta de senso crítico de uma população que não tem educação de qualidade.

É preciso culpar quem tem responsabilidade e não as transferir. A nossa sorte é que o Poder Judiciário e todo o sistema do que constitucionalmente se chama “Justiça” é formado por meio de concurso público e exames de desempenho profissional e não por indicações políticas. É através dessa burocracia estável e ilustrada que estamos, aos poucos, transformando o país. É claro que há equívocos internos, corrupções endógenas, enfim, nada é perfeito. Mas, ainda assim, graças ao trabalho investigativo de agentes estatais é que os políticos sucessivamente reeleitos estão caindo. Deixássemos somente a cargo do povo, certamente os ladrões de casaca se eternizariam nas cadeiras das assembleias e do congresso nacional. Nossa sorte é que o sistema judicial de base não é permeado por indicações políticas. A regra geral é a seguinte: onde há indicação, há favor; onde há favor, há compromisso; onde há compromisso, há retribuição e, portanto, corrupção.

Chego a duas conclusões. A primeira delas diz respeito à formação dos tribunais. O meio jurídico precisa amadurecer para estruturar um Poder Judiciário cada vez com menos influência política. Diga-se o mesmo quanto aos Tribunais de Contas e Tribunais Eleitorais. De outro lado, devemos alargar a quarentena para que juízes, promotores não se movam mirando um futuro palanque. A segunda conclusão é uma obviedade que precisa ser lembrada – um povo mal instruído, que não tem acesso à educação e cultura, pauta seus movimentos pelo utilitarismo político, a pior forma de escolher um representante. É de um cinismo brutal dizer que um povo semianalfabeto sabe escolher com sabedoria, assim como afirmar que o culpado é o povo com os atuais índices de instrução. As escolhas populares são o retrato do próprio atraso, uma espécie de recibo nacional de ignorância. O povo brasileiro reage por legítima defesa ou por estado de necessidade, infelizmente.

Eduardo Mahon é advogado e escritor.



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